terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Um mundo sem erudição em Jogador N.° 1

Pôster Ready Player One by Harlan Elam


- E o que é real, o que é?
Animatrix, Uma história de detetive


Ernest Cline encontrou o mote perfeito para escrever um romance declarando seu amor aos anos '80, especialmente em relação aos videogames. Em seu livro Jogador N.° 1, o quase trilionário James Halliday, devastado pelo câncer, próximo do fim e sem herdeiros, elabora o concurso a se iniciar em seu post mortem. Usuários do OASIS, seu super videogame de profunda imersão em realidade virtual, deverão encontrar o misterioso easter egg plantando, pelo magnata, no sistema, após três fases de jogo. Em todas as fases, o conhecimento em cultura pop oitentista é imprescindível: música, séries, filmes, games e tudo quanto é porcaria. Surgem, então, os caça-ovos e oologistas culturais, empreitada onde diletante (noob?) não entra.

OASIS não é apenas acrônimo para Ontologically Anthropocentric Sensory Immersive Simulation. A realidade criada após imersão representa, deveras, um oásis em meio a imundície do anos de 2044, época da história: fome, doenças, crise energética, falta de habitação e violência extrema. Você pode sobreviver miseravelmente num cubículo se puder existir a maior parte do tempo no OASIS, onde trabalhará, estudará e terá a maior parte de sua interação social. Prático e agradável, em oposição à realidade.

O título original do livro é bem mais interessante do que o nacional. Ready Player One possui relação com a obra ao destacar aquele momento onde, nos arcades (fliperama com monitor), verificávamos esta mensagem antes do início do jogo. Além disso, é a mensagem escolhida por James Halliday para o momento pós login em seu magnífico sistema.

Ernest Cline é co-roteirista da adaptação ao cinema, realizada por Steven Spielberg. Este, aliás, nome constantemente citado na obra escrita, diante de sua relevância à telona nos anos '80 e seguintes. Não preciso, aqui, me perder citando seus filmes icônicos. O bacana nesta adaptação é não tentarem ser fiel à ideia primeva. A produção cinematográfica é simplória. Os três níveis percorridos pelo protagonista da trama - o jogador Wade Watt, avatar denominado Parzival, quando imerso  - são bem extensos, complexos e apegados a minúcias culturais para sua resolução. Não havia como levar tudo às telas.

Transitei bem tanto pelo filme quanto pelo romance, pois o refugo cultural americano da década perdida tem papel relevante em minha formação. Quanto a jogos eletrônicos, conquanto eu não seja gamer, convivi bastante com videogames da 2ª até a 4ª geração, como mencionei em postagem anterior. Além disso, por ser curioso em tecnologia, conhecia muito bem a pré-geração de games e dados sobre a produção de consoles e cartuchos durante anos a fio. Mesmo assim, em ambas mídias, fiquei meio perplexo como o futuro de Cline é pobre não apenas materialmente, num mundo colapsado economicamente. Ele também é pobre culturalmente. Não há resquício de erudição na Terra. O único conhecimento valorizado é acerca de toneladas de lixo popular.

A porcaria abunda na produção cultural popular. Isso é fato. Claro que, ao chafurdar no lodaçal, você encontra realizações que merecem, realmente, recordação constante. Assim, por exemplo, me deliciei com tantas menções aos filmes de John Hughes, os quais me faziam querer ser um jovem ianque na Shermer High School. No filme, há destaque especial a'O Iluminado de Stanley Kubrick, adaptação odiada por Stephen King. Achei este momento legal, embora não exista no livro. Neste, os filmes mais destacados são três que igualmente amo: Jogos de Guerra com Matthew Broderick, Blade Runner (obra prima cyberpunk de Ridley Scott) e Monty Python - Em Busca do Cálice Sagrado. O primeiro foi relevante em minha infância e o terceiro, o qual conheço desde adolescente, possui maior relevância emocional em minha vida após me ser reapresentado por alguém especial, quando na vida adulta. Os Cavaleiros que dizem "Ni", na trupe de Python, ganham contornos mágicos em nossas vidas quando fazem sorrir, a nosso lado, a pessoa amada.

O livro é divido em três partes. Ou melhor: três níveis de jogo. A cada nível, os caça-ovos precisam encontrar chaves (cobre, jade e cristal) para abrir três portões. Nessa empreitada, precisam disputar alguma partida de videogame vintage, associar conhecimentos culturais diversos e representar alguma personagem cinematográfica, do início ao final, ganhando ou perdendo pontos por fala, ação e até mesmo entonação de voz. O grande jogo de Halliday é, essencialmente, um RPG colossal.

Outro mérito do livro é destacar os jogos de tabuleiro, com ênfase em Dungeons & Dragons e constantes menções ao seu co-criador Gary Gygax. Logo após, mencionar a evolução do RPG para computadores pessoais jurássicos, onde você se divertia lendo o texto gradualmente lançado no ecrã, sem imagens, e respondendo às perguntas. Daí, o jogo seguiria o caminho "x" ou "y" a cada resposta ou conjunto de respostas. Quando criança, via pessoas mais velhas jogando RPG de mesa, com canetas, caderninhos para anotações e caralhada de dados. Achava fascinante, mas nunca joguei. Apenas admirava a beleza dos livros, dados e alguns cartões. Também cheguei a ver jogos vendidos como suprimento de informática, até mesmo em disquetes de 5 ¼”. Quando guri, tive acessos esporádicos a um PC monstruoso com esse floppy disk, mas eu era muito pequeno e não sabia como usar aquele troço e sequer recordo que máquina era aquela. Mas me encantava.

Ainda sobre Gary Gygax, em dado momento seu nome é posto ao lado de Bill Gates. E isso me recordou algo: a relação entre Ogden "Og" Morrow e James Halliday, no romance, tem muito a ver com a amizade entre Gates e Paul Allen, a qual mencionei brevemente em postagem anterior. "Og" possui muito de Paul Allen, especialmente o estilo de vida descolado, associando lucro a fascismo e tendo saído cedo da vida corporativa para desfrutar seus bilhões num cotidiano de luxo e excessos, enquanto vomitava mantras batidos sobre os males do capitalismo.


Tributo aos anos 80' por Jim'll Paint It

Voltemos à pobreza cultural da obra. No filme, não encontramos nenhuma referência erudita. Mas no romance, há ao menos umazinha. E decisiva! No cinema, apenas no jogo Atari Adventure é onde se encontra o enigma final a ser solucionado. Sempre gostei deste joguinho e recordo de minha infância, conquanto nunca tenha encontrando o easter egg de seu criador, Warren Robinett. Em alguns documentários como A Era do Videogame ou A História do Videogame, sabemos que a Atari tornou-se arbitrária com seus designers e programadores, quando foi adquirida pela Warner e chefiada por Ray Kassar, ignorante no assunto. Quando programadores geniais a exemplo de David Crane exigiram melhores salários e reconhecimento, foi de Ray a célebre e estúpida colocação de que não haveria diferença entre o designer de sucessos comerciais e o "John Smith" que montava o cartucho na esteira de produção sabe-se-lá-onde. É como querer atribuir idênticos salários a um Médico Cirurgião e ao zelador da clínica. Não sejamos românticos, colegas. Trabalhos distintos pedem prestígios e retornos distintos. Logo após, vários caras saíram daquela bodega e montaram a hoje poderosa Activision. Robinett foi mais brincalhão: escondeu seu nome no jogo Adventure, atestando ter sido sua, e não da Warner, aquela criação. Já no romance, antes de Adventure, Wade/Parzival precisa jogar Tempest, também da Atari. Ele é pego de surpresa com o desafio, mas as pistas foram deixadas às claras pelo magnata defunto.

Na trama escrita, a arrogante garota geek Samantha Cook - vulgo Art3mis - afirma que Tempest, no terceiro nível, seria óbvio. O de cujus havia consignado em seus registros que "É preciso deixar um pouco mais difícil essa conquista, para que a vitória fácil demais não desmereça o preço". Tal citação é de Shakespeare em sua última peça: A Tempestade.

Enfim: não sou erudito. Mas sei que devemos manter contato com a erudição e não ceder integralmente à estética maleável, açucarada e gordurosa da cultura pop. Certamente, nesta, encontramos bons e relevantes feitos à nossa formação. O ponto está no equilíbrio entre ouvir os grunhidos roucos de Axel em Guns 'n Roses e as variações para cravo de Johann Sebastian Bach. Existência apenas de punhetação no mundo que hoje denominamos "geek" (palavrinha tão fedida quanto "nerd") é, creio, miserável.

Esta postagem foi elaborada mais para quem ao menos assistiu ao filme. Por isso não me estendi tanto quanto ao enredo e demais detalhes e referências. De qualquer forma, se você desconhece a história, assista-a: é bem divertida para quem está na casa dos quarenta anos e manteve contato com cultura pop em sua pobre formação em clássicos da Sessão da Tarde e fichas de fliperama. Quanto ao livro: boa leitura, dinâmica, esperta e faz valer o tempo dedicado. Certamente não é uma obra prima e, creio, sequer o autor nutriu tal afã.

Durante algumas passagens, você sentirá o texto meio artificial, como se o autor tentasse forçar a barra para encaixar o máximo de referências culturais por página. Mesmo assim, o resultado, como alhures dito, foi satisfatório. O oposto se deu em Armada, seu segundo romance o qual, creio, comentarei mais à frente neste blogue. Armada é bacana se lido descompromissadamente; porém, pobre ao tentar repetir a fórmula de Jogador, com tanta forçação de barra nas referências sci-fi que pode, às vezes, dar vontade de abandonar a leitura.

Fico por aqui. Abraços oitentistas e até a próxima.



Porque ler de graça é mais gostoso...

9 comentários:

  1. não li o livro

    o filme ficou fraco: me pareceu um pouco desencontrado - um filme quase infantil com um assassinato determinado por um executivo incompetente. no começo pensei que seria um "os goonies" moderno e geeek, mas ficou decepcionante
    há uma metralhadora de referencias pop, mas sem um verniz de erudição não dá pra ser feliz

    achei um guia legal dos anos 80 baseado no filme, ainda que não essencial:
    https://www.amazon.com.br/Almanaque-Jogador-N%C2%BA1-Fabio-Kataoka/dp/8544107095/ref=asc_df_8544107095/?tag=googleshopp00-20&linkCode=df0&hvadid=379765940837&hvpos=1o1&hvnetw=g&hvrand=12813165433439224967&hvpone=&hvptwo=&hvqmt=&hvdev=c&hvdvcmdl=&hvlocint=&hvlocphy=20102&hvtargid=pla-811119474361&psc=1

    para os amante de atari, esse livro é interesssante:
    https://obscult.blogspot.com/2019/07/livro-art-of-atari-2016tim-lapetino.html

    abs!

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    1. p.s.: esqueci de escrever: esse mundo sem erudição existe e a maioria da população brasileira está entre seus habitantes, não só em favelas, mas em quase todas as vielas

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    2. Não sabia da existência deste Almanaque e acho que foi uma grande ideia de quem o elaborou. Darei uma conferida. Espero que seja ilustrado porque, em regra, livros assim têm problemas com direitos autorais.

      O filme é muito simplório, em relação ao livro. Não achei decepcionante porque fui ver esperando pouco do mesmo. Não nutri expectativa.

      Esse art book Atari já me atraiu bastante. Capas de cartuchos eram lindas, para compensar a baixa qualidade dos gráficos, limitados pela tecnologia da época. E, claro, seduzir compradores.

      Abraços!

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    3. Transito entre vários nichos: ricos, pobres, fãs de forró e sertanejo e autodenominados "geeks": tudo gado.

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    4. bom saber que todas as classes sociais estão perdidas em sua maior parte
      o almanaque é abundantemente ilustrado ainda que se use apenas papel offset e se trate de uma brochura

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    5. Conferi as fotos que vc postou no Facebook. Fartamente ilustrado. Mas esse papel branco fode com minha visão. Pensei muito em comprar. Mas, como disse, ando evitando bastante comprar material impresso.

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    6. sem problema, uma hora alguem digitaliza

      lista de anição japa para download gratuito: https://malkavanimes.fansubs.com.br/listao-dos-animes/?fbclid=IwAR2ZMfm08_lWP5z12n71AV0lfopH6VFukx3ZXfzwV5c7zHMdSJLv6TZ5Nh8

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    7. Que listão! Haja tempo de vida para tanto!!!!

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  2. Oi, Fabiano. Tudo bem, sim. Livro e filme, exato. Neste, o autor do romance como co roteirista. Acho que o livro agrada até mesmo quem não passa longe de videogames. Para caras de nossa idade, vale a pena pela remissões culturais.
    Abraços!

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