quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O Americano ou Um Homem Misterioso [ romance de Martin Booth ]


Assisti a Um Homem Misterioso dois anos após seu lançamento. Gostei bastante. Chamou minha atenção o aspecto silencioso da produção, onde apenas o essencial é dito. Depois, topei com o romance que deu origem ao roteiro e pensei: por que não comprá-lo? Nunca havia lido nada de Martin Booth (conquanto o conhecesse pela boa reputação) e pareceu bem vinda a oportunidade. A edição da Record é decente: brochura com orelhas, papel off-white de boa gramatura e fonte generosa. Assim, não cansamos tanto a visão. A tradução é de Marcelo Schild e a capa segue o padrão antigo da editora: emular o pôster da adaptação cinematográfica, com direito até mesmo à ficha técnica na quarta capa. Acho isso brega e de uma falta de criatividade tremenda. Entretanto, compreendo que são meios encontrados pelo mercado para promover a obra nas prateleiras (físicas ou eletrônicas). E, provavelmente, está dando certo.

O cinema apenas adaptou alguns elementos centrais da obra escrita. Gosto disso. Não me atraem tanto produções que tentam levar à tela todos os elementos do meio primevo. Penso que muita coisa é intraduzível de uma mídia para outra, e que a tentativa de quebrar essa barreira quase sempre mostra-se insatisfatória. Já comentei acerca desse fenômeno numa postagem antiga intitulada Terror Elegante: Fome de Viver e Coração Satânico. No filme, o mote é simples: homem misterioso chega a pequeno vilarejo italiano para se esconder de possível perseguição e, ao mesmo tempo, atender ao que seria sua última encomenda: adaptar uma arma e lhe dar abafador de ruídos. Durante esse tempo, o armeiro é visitado pelo “habitante das sombras” que lhe parece ser uma ameça à vida e, ao mesmo tempo, mantém temor constante até mesmo em relação ao seu antigo colega de trabalho.

No romance, a história é mais longa e complexa, obviamente. O armeiro disfarça-se de pintor de borboletas (daí sua alcunha na região: Signore Farfalla; no filme, esse nome nunca é dito e o ator George Clooney se limita à tatuagem de borboleta evidenciada discretamente). Ele pensa em viver naquele vilarejo após concluir seu último trabalho e, talvez, ter como companhia para o restante de sua vida a bela Clara, universitária prostituta com quem se encontra esporadicamente. A amizade entre o protagonista e o padre Benedetto é bem explorada, com bonitos momentos de conversas entre amigos numa agradável varanda com a qual até temos uma certa satisfação a imaginando. O desenrolar da trama mudou essencialmente. O habitante das sombras que estabelece a vigília de Farfalla tem grande importância na conclusão do livro; já a atiradora, não, limitando-se apenas à compradora do produto. A relação com Clara é bem intensa e envolve idas à restaurante, passeio e até mesmo surubinhas com uma amiga da universitária. Como, no livro, o protagonista reside na Itália já há bom tempo, ele possui um pequeno círculo de amigos bem diversificados. Não é tão solitário quanto no cinema.

No cinema, a trama inicia-se com o assassinato de uma possível namorada de “Farfalla” por ele mesmo, como forma de proteção após escapar de uma emboscada. No romance, tal evento é melhor detalhado mais ao final da trama. E como este fato fechou ainda mais o armeiro a relacionamentos estreitos.

O livro é bom. Vale a pena como entretenimento rápido. Suas mais de 360 páginas são lidas rapidamente, embora o autor pudesse ter suprimido várias páginas se purgasse o texto de descrições repetitivas e outras supérfluas. Se você espremer bem o volume, acho que daria uma novela de duzentas páginas num ritmo mais dinâmico. O estado espiritual do Sr.° Farfalla é repetido à exaustão, seus planos, divagações e sonhos. A paisagem urbana e campestre do vilarejo também, assim como a residência de nosso anti-herói. Além disso, percebemos que o autor repassa ao fabricante de armas (artista, como gosta de ser visto) suas introspecções pessoais. E, colegas, como a cabeça de Martin Booth é confusa! Ele nos cansa um pouco com suas críticas à sociedade moderna, despojada e com ânsia de revolução (viciada pelo progressismo sem meditação) e, ao mesmo tempo, volta atrás para atacar instituições tradicionais, especialmente a Igreja. Vai entender. Em um momento, por exemplo, ele nos repassa o mantra conservador: “É melhor mudar o modo como um homem percebe o mundo do que mudar o mundo que ele percebe.” (p. 50). O reacionarismo negativo (sim, há o positivo) de Martin Booth fica ainda mais evidente nas linhas abaixo:
No centro do Corso, fechado para todo tráfego exceto para ônibus e táxis, os quais são poucos nesse horário, homens caminham de braços dados, às vezes de mãos dadas. Esta não é uma cidade de bichas, um antro de veados, uma mina de ouro para o charlatão com um tratamento para a Aids feito de sementes de damasco amassadas com quinino. É a Itália na qual homens ficam de mãos dadas enquanto conversam sobre as esposas, amantes, sucessos nos negócios e os fracassos do governo.
Entre essas oscilações meditativas do autor refletidas em seu anti-herói, onde valeria a pena tentar mudar o mundo, deixar sua marca na história a todo custo (como um bom demente iconoclasta), ainda há momentos onde ele observa que apenas a morte muda algo, especialmente (ou essencialmente) de personalidades influentes. Assim, chega a asseverar num parágrafo de uma frase só: “Somente assassinatos alteram o mundo” (p. 264). E, para reforçar ainda mais a “bipolaridade” (ou melhor: esquizofrenia literária do Martin Booth), o armeiro, após destilar todo o seu ódio e descrença na Igreja, trava amizade íntima e confidente com o pároco local, homem extremamente convicto da fé que professa. E, após disparar contra tudo e todos, Farfalla ainda nos assusta afirmando (p. 305):
Vivemos no final do século XX, evitei cuidadosamente usar o nome do Deus cristão em vão. Tenho respeito pelas religiões dos outros: afinal de contas, trabalhei para várias causas – islamismo, cristianismo, comunismo. Não tenho a intenção de depreciar ou insultar as crenças alheias. Nada pode ser ganho através disso, salvo controvérsias e a satisfação dúbia do insulto.
Um fato curioso encontrado em livre pequisa minha na internet é que, após a divulgação do filme, a Bantam Books publicou o romance com o título cinematográfico The American, destacando em letras menores “Previously published as A Very Private Gentleman / Now a major motion picture”. E a capa do volume foi a mesma escolhida pela Record. Achei isso meio assustador. Não bastasse a influência do cinema na escolha da capa, chegou-se ao ponto de alterar o nome original da obra. E veja mais: neste caso, The American para o romance é um desastre. É que, na obra escrita, não sabemos a nacionalidade do Signore Borboleta. Os nativos acham ser inglês. Entretanto, tudo é obscuro. Grande bola fora do mercado editorial. E, penso, falta de respeito com o autor, falecido em 2004. Acredito que, atualmente, o copyright pertença à família do escritor, que está cagando e andando para seu legado, desde que dê bastante lucro antes que caia em domínio público. Mas prefiro não julgá-los demasiadamente, pois todo mundo gosta de bufunfa graúda na conta bancária.

Bom, é só isso que tenho a comentar acerca do livro e seus paralelos com a adaptação cinematográfica sem entregar muito da trama. Abaixo, deixo os colegas com duas ótimas cenas onde nada é dito com palavras: quando o armeiro fabrica o supressor e, depois, o teste no campo ao lado da belíssima Thekla Reuten.

Abraço allegro ma non troppo!


5 comentários:

  1. "“Somente assassinatos alteram o mundo”" - e eu pensando que era o conhecimento
    ótimo texto, mas parece que o filme quebra o galho e o livro parece um pouco chato "daria uma novela de duzentas páginas num ritmo mais dinâmico."

    abs!

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    1. "e eu pensando que era o conhecimento"

      Garoto ingênuo.

      Abraços!

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  2. Nunca vi nem o filme e nem o livro da obra. Eu acho que obras literárias e cinematográficas por serem mídias diferentes, nem sempre funcionam perfeitamente quando uma tenta levar para si a outra com exatidão, afinal nem tudo o que está escrito pode ser levado para o cinema de forma que fique visualmente atraente. Infelizmente em alguns casos, mesmo sendo fiel a obra literária, a adaptação acaba sendo piegas ou exagerada. Assim como os casos de livros que são feitos através do roteiro de filmes. Por isso eu não ligo quando a obra adaptada muda de forma que naquela mídia fique atraente para quem vai consumir a mesma. Enfim, não sou a maior fã desse estilo de obra mas não descartaria a leitura futura.

    Abraço,
    Larissa | Parágrafo Cult

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    1. "Enfim, não sou a maior fã desse estilo de obra mas não descartaria a leitura futura."

      Provarás de tudo e escolherás o melhor. :-)

      Abraços!!!

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  3. "já que o cinema é uma outra linguagem"

    Concordo. E não compreendo a razão do chororô de tanta gente quando ataca um filme ou seriado por "não ter sido fiel à obra escrita".

    Abraços e tudo de bom tb, Fabiano!

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