domingo, 13 de outubro de 2019

Eastrail 177 Trilogy e o Übermensch possível


"Vede; eu anuncio-vos o Super-homem: "É ele esse raio! É ele esse delírio!"
De Assim falou Zaratustra, por Friedrich Nietzsche

Em 1982, Alan Moore nos contou uma grande história de super-heróis. Nela, Micky Moran - homem de meia idade fora de forma que faz bico de repórter para sobreviver - descobre ser Miracleman, líder do time de "supers" cujas aventuras passadas ninguém recorda. Suas aventuras envolviam o que há de mais ingênuo no gênero. Para começar, recebeu seus poderes de um astrofísico que se tornou deidade e lhe deu a "palavra mágica" para quando precisasse salvar o dia. Não era Shazam, mas sim Kimota (atomik). Ele e seus amigos - incluídos aí Kid Miracleman e Miraclewoman (!) - viviam em luta constante com o maquiavélico Gargunza, gênio científico do mal. Para variar, ninguém se machucava realmente, todos contavam piadinhas em momentos de tensão e, no "número seguinte", o vilão retornava para encher o saco.

Mas como Micky Moran viveu tudo isso e ninguém se recordava da existência de superseres? Simples, as maravilhas existiam apenas em HQs infantis e ele foi cobaia num longo experimento, onde viveu quase oito anos em sono constante, sendo alimentado com aventuras pueris retiradas de gibis. Só que, um dia, ao se recordar de tudo, despertar na plenitude de seus poderes e buscar sua origem, os super-heróis e os mega vilões estarão no mundo real. Entretanto, as histórias não serão mais tão bobas: estupros (masculino e feminino), pedaços de corpos caindo dos céus, orgias celestiais e totalitarismo estarão presentes. E até mesmo suicídio do alter ego de Miracleman, numa das passagens que considero a mais tocante dos quadrinhos. Num dado momento, Micky Moran quer morrer: perdeu esposa e filha e se vê como inútil. Então, sobe uma montanha, retira as roupas e deixa um bilhete. Pronuncia a palavra Kimota e torna-se Miracleman. Este lê seu epitáfio e, desde então, nunca mais voltará ao corpo de Moran. Na mitologia criada por Alan Moore, a "transformação" se dá pela troca de corpos clonados, quando pronunciada a palavra-chave. Mike perecerá no limbo do infra-espaço, para sempre. Seria algo como Clark Kent se matar e deixar apenas Superman vivo.

"Suicídio" de Mike Moran em Miracleman #14

Num dado momento da saga (texto em prosa), Miracleman nos diz que, em seu aniversário de renascimento, o mundo comemorou queimando gibis, livros e filmes de ficção científica. O faz-de-conta, penso, não era mais necessário. Os deuses estavam entre nós e sonhar com homens voadores não fazia mais sentido. Alan Moore repetiu isso posteriormente em Watchmen - os gibis mais vendidos, ali, eram de pirataria, como Contos do Cargueiro Negro, por exemplo, pois heróis realmente existiam.

Ao seu modo, o cineasta Shyamalan M. Night fez o mesmo com o gênero em sua trilogia Eastrail 177. Meio qual Moore, conseguiu dar uma "desconstruída" no nicho. Tudo começou em 2000, em Corpo Fechado. Mais recentemente, concluiu sua ideia em Fragmentado (2016)  e Vidro (2019). E, assim, prestou grande homenagem aos nossos amados quadrinhos, especialmente ao gênero super-herói, nos fazendo parecer possível a existência, entre nós, de superseres benevolentes e gênios do mal.

Na trilogia apelidada de Eastrail 177 - referência ao acidente de trem mostrado em Corpo Fechado -, três homens encarnam estereótipos de comics. David Dunne é o herói típico, dotado de superforça e que, ao seu modo, combate o crime trajando capa (embora de chuva). Elijah Price mostra-se, mais à frente, o vilão brilhante, incapaz de muito esforço físico e dotado de imensa capacidade cognitiva. Kevin Crumb é o múltiplo, cuja personalidade "A Fera" é praticamente impossível de se abater. E no meio de tudo isto está Ellie Staple, psiquiatra que invoca histórias em quadrinho para apontar sua tese de delírios de grandeza. À frente, a trama se mostra mais complexa do que parecia inicialmente, uma organização global oculta sai das sombras e, ao final, uma modesta loja de HQs encerra, em Vidro, o que se iniciou em Corpo Fechado.

Confesso não gostar de filmes de super-heróis. Ainda não vi, por exemplo, nenhum de Thor, os últimos dois de Vingadores, nenhum Liga da Justiça, dentre tantos. Não consigo gostar daquelas histórias divertidas onde, em momentos de vida ou morte, o Homem de Ferro soltará piadinhas que farão toda a platéia sorrir no cinema, enquanto come pipoca no super-balde customizado, ostentando óculos 3D. Respeito opiniões em contrário, mas acho essas produções puro lixo. Há quase quarenta anos, gente como Alan Moore e Frank Miller, e.g., estavam desconstruindo o gênero para extrair de um universo aparentemente pobre algo soberbo. E hoje, nos cinemas e em diversos títulos impressos, retrocedemos para retirar todo o potencial edificado às custa de tanto esforço artístico e intelectual.

Há quem alegue que os blockbusters DC/Marvel se destinariam às crianças e por isso têm essa pegada mais retardada. Não é tanto o que vejo em salas de cinema. Os marmanjos estão em grande maioria, com suas camisetas ostentando logotipos de heróis. E, na tentativa de nos mostrar um super-homem possível, acho que a trilogia Eastrail 177 consegue tal façanha melhor que todos os milhões investidos em efeitos especiais nas produções arrasa-quarteirão.

Fica, enfim, minha sugestão de cinema para quem ama quadrinhos com seus heróis heroicos e as vilanias dos vilões. E, em tempo, destaco que a palavra "Übermensch" é utilizada expressamente por Moore em Miracleman e Zaratustra também é o nome escolhido pelo malvado Doutor Gargunza no projeto para criação de super humanos.

Super abraços e até a próxima.

7 comentários:

  1. Cara, filmes para massas tem que ser simplificado
    Deve ter gente que nunca entendeu matrix
    Essa trilogia Shyamalan ainda é leve diante do panorama adulto que normalmente se encontrava no antigo selo vertido
    Atualmente o canal prime da amazon tem impressionado com adaptações, mas continua sendo nicho
    Capitão América, vingadores e Thor + filmes da dc comics continuam sendo apenas lixos roteirizados em um western de deuses gregos politicamente corretos
    E para as massas está muito bom

    Abs

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    1. Bem colocado, Scant. Entendo o apelo comercial. Eu mesmo como CEO de um estúdio alocaria recursos em porqueiras assim.
      Assino o Prime Video, mas ainda nao vi várias desses séries.
      Abraços!

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  2. Olá.
    Diria que você é corajoso por exemplificar o sentimento para com os filmes de super-herois ainda mais em uma era onde as pessoas estão tão contrárias à qualquer posição que não vá na crista da onda. Respeito sua opinião, apesar de não concordar pois tenho uma visão menos elitista do cinema, que não acredito que deva se concentrar em apenas criar catarses alienantes que normalmente só duram dois ou três dias depois do filmes e logo são esquecidos.
    Entretanto, não é meu objetivo criticar sua posição quanto à isso, mas dizer que fiquei muito aplacada com sua resenha. Eu vi Vidro à um tempo e havia ficado confusa até entender o propósito da obra, de denotar o erro das entradas para super-herois. Achei sua posição quanto ao filme bem parecida com a minha.
    Abraços.

    Blog: Fantástica Ficção

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    1. Olá, Jéssica.

      Seja sempre bem vinda e discorde à vontade do que quiser. Estamos aqui para isso.

      Vamos lá... Compreendo seu ponto de vista. Mas esclareço que quando me refiro às produções desmioladas do gênero de super heróis é mais devido à minha insatisfação com o subaproveitamento de personagens e enredos, considerando, sobretudo, que, há décadas, já se mostrou ser possível escrever material de qualidade elevada, algo mais refinado, com aspectos dessas HQs.
      Penso que não seria elitismo, vez que, eu mesmo, sou grande fã do cinema trash, gore, "c,d... y,z", por exemplo. Também gosto de besteirol, aliás. Acredito que livros, cinemas, música, séries, games etc., qualquer plataforma, enfim, pode se destinar ao mero entretenimento. E isso é bom.
      Em resumo: é uma insatisfação minha bem pontual.
      Quanto à alegada catarse... discordarei de você. Nem todo mundo terá a informação deletada dos miolos em poucos dias. Algumas obras cinematográficas tocam nossas almas por todo o restante de nossa vida. E valeria a pena tentar investir nisso no cinema de heróis, também. É o que penso...
      Gostei muito do que vi em Coringa (2019), por exemplo.
      Abraços, garota!

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  3. Eu também não sou muito fã de filmes de heróis. Na real, nem dos quadrinhos desse estilo. Tentei ler algumas vezes mas não rolou, achei bem chato e sinceramente, mais do mesmo. As únicas que li e gostei foram, A Piada Mortal, O Homem sem Medo de Frank Miller e Velho Logan (essa última foi a que menos gostei). Eu vi os trailers dessa trilogia e não havia me empolgado tanto porque me pareceram bem parados. Vou tentar assistir para ter uma opinião sobre a trilogia que citou.

    Abraço,
    Parágrafo Cult

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    1. Olá, Larissa.

      Quanto a Moore, vi que você leu e até resenhou Do Inferno. Então aproveito a deixa e te recomendo ler TUDO o que ele escreveu sobre heróis.

      Abraços!

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