sábado, 2 de fevereiro de 2019

Ayako, O Relatório de Brodeck e o ceticismo

Olha o lacre! Ain como é bom ser rico e revolucionário.

Gosto de definições de conservadorismo dadas a esmo em várias mídias por Pondè como sendo, essencialmente, decorrente da filosofia do ceticismo. Uma mente conservadora sabe que a natureza humana é errática e que grandes ideias revolucionárias quase sempre darão em merda. As chamada teorias de gabinetes, então, partem do pressuposto de que aquele burocrata com poder normativo em mãos pode, com uma canetada, resolver problemas de séculos. É mais ou menos como Fernando Haddad tentando "consertar" o trânsito de São Paulo com galões de tinta vermelha e redução de limites de velocidade. Os acometidos pela doença da mentalidade revolucionária creem que seus líderes carismáticos têm solução para tudo, como o dom messiânico para injetar recursos infinitos em programas sociais ou editarem decretos que vão de encontro há milênios de evolução social e cultural. Esquerdistas acreditam que costumes se mudam de dentro do gabinete presidencial, através de decretismo e mal uso de grana pública (leia-se: bufunfa retirada de nossos bolsos).

Recentemente li muita coisa, tanto impressa quanto digital. Aqui, resolvi separar duas obras fenomenais (não estou exagerando): Ayako (Osamu Tezuka) e O Relatório de Brodeck (Manu Larcenet sobre romance de Philippe Claudel). A primeira, creio, a única edição omnibus brasileira com suas mais de setecentas páginas. Já O Relatório reúne o que lá fora foi lançado em dois tomos separadamente de maneira respeitável. A editora Pipoca & Nanquim capricha em cada uma de suas publicações. Destaco, sobretudo, a caixa para guardar o volume, na estante, na vertical, já que as pranchas são em formato paisagem. A editora Veneta também não fica atrás e sempre nos deu material de qualidade por dentro e por fora. Ayako chegou em capa dura, papel de boa gramatura e com abertura impecável no momento da leitura. Conquanto volumoso, você pode abrir bem o volume sem medo de arrebentar costuras ou lombada.

Em Ayako, Tezuka nos narra algumas décadas da história japonesa do pós guerra até o surgimento da Yakuza, tudo visto pelos olhos da decadente família Tengue. No seio desta família em bancarrota, a pequena Ayako que tá título à obra nos conduz por uma trama de angústia, lascívia e traições. Já O Relatório de Brodeck é uma realização impressionista, de certa forma, pois não nos diz onde nem quando se passa; contudo, nos indica ser nas imediações da Alsácia-Lorena logo após o final da Segunda Grande Guerra. O protagonista Brodeck nos guia pelo horror extremo quando homens estão sujeitos a situações igualmente extremas. As duas obras têm em comum os frutos da guerra. A guerra mais sangrenta já vivenciada é o ponto de partida de ambas as narrativas.

Ambos volumes, em comum, também possuem a bandeira enviesada equivocadamente à esquerda, por quem os trouxe ao Brasil. Ayako tem prefácio de Rogério de Campos, algo bem similar ao que ele sempre busca fazer quando edita algo: criticar o capitalismo, preferencialmente o norte-americano. O ativista psolista das HQs nacionais aproveita para atacar a ocupação ianque em solo nipônico e, curiosamente, parece esquecer que o próprio Tezuka foi notório admirador da democracia norte-americana e de sua produção cultural livre. O ativista, ainda, parece esquecer que a ocupação é, muitas vezes, consequência contumaz pós guerra e batalhas, ainda mais diante do avanço cruel das forças japonesas. Não compreendo de onde se criou o mito do "bom japonês", sempre pacífico e sem ânsia beligerante, apenas interessado em tomar chá e cultivar bonsai. Não existe nação boazinha, ainda mais quando o assunto é guerra. O Japão pagou o preço por suas ações sangrentas. Destaco, ainda, que a ocupação americana, de certa forma, ajudou aquela nação a impulsionar sua economia, abandonar de vez os grandes latifúndios (especialmente por promover na marra a reforma agrária), retirou o poder das velhas oligarquias (tão bem reveladas na obra da Tezuka) e, principalmente, deu o primeiro sopro de igualdade testemunhado pelo Japão quase feudal. Mas, curiosamente, em seu prefácio, Rogério de Campos apenas destaca o viés negativo da ocupação.

Rogério de Campos esteve no Pipoca & Nanquim comentando o lançamento de Ayako, onde aproveitou, junto à turma do canal-blogue-editora, para destilar seus mantras e lugares-comuns contra o malvado regime de mercado, gringos e "conservadores". E sem resistência - durante seu discurso meio-boca - de nenhum pipoqueiro. E este mesmo canal, ao comentar o belíssimo lançamento O Relatório de Brodeck, procurou advertir a moçada dos perigos do fascismo sem, em momento algum, destacar que a ocupação da França pelos oficiais alemães teve o aval da nata da esquerda progressista francesa, a exemplo de Simone Beauvoir. Filosoficamente, os planos do Reich encontraram guarita nos corações dos ideólogos socialistas, a exemplo de George Bernard Shaw e tantos outros. Qualquer pessoa razoavelmente instruída sabe que os planos do Führer eram, essencialmente, pela refutação do socialismo de estirpe marxista e implantação de um "socialismo" para chamar de seu, fundado sobretudo em aspectos ocultos e raciais. Além do mais, muitos gostam de invocar O Relatório para despejar groselha sobre racismo e xenofobia. Ora, sejamos francos: o obra é mais complexa do que esses lugares-comuns. A vida, em si, é mais complexa. Acerca disso, abro os parêntesis abaixo.
Gosto de atiçar um pouco, fazendo mea culpa, por assim dizer, com os brutos habitantes do vilarejo que, creio está encravado na região da Alsácia. O andarilho poderia ser alguém, essencialmente, mal intencionado? Sabemos que não. Ou melhor: "supomos" que não, até porque terminamos a leitura sem saber nada daquele homem que destoa de tudo à sua volta. Ele era amável e sensível, gostava de pintar a natureza e de ler? Falemos de nazistas, tendo tudo a ver com a obra: Hitler queria ser pintor na juventude e se gabava das centenas de romances lidos ao ano, em sua vasta biblioteca montanhesa, além de gostar de animais e ser vegetariano, por exemplo. A elite burocrática do Reich, seus mais graduados Oficiais, foram educados lendo Goethe, séculos de Filosofia germânica e ouvindo música clássica. Eram cientistas gabaritados e criativos, sendo inclusive perdoados no pós guerra em troca de compartilhar seus conhecimentos. A Operação Clipe de Papel não foi apenas roteiro do seriado Arquivo X.
Os pobres e sofridos homens daquele rincão, recém-saídos do horror da Segunda Grande Guerra, estariam assim tão dispostos ao nosso julgamento moderno, contemporâneo e esclarecido? Teriam os vizinhos argentinos de Adolf Eichmann motivos para vê-lo como uma ameaça, como um suspeito? Isso para citar outro nazista. Acaso os vizinhos de  Eichmann o tivessem linchado, isso seria tão condenável por nós, testemunhas históricas dos horrores dos campos de concentração? Sejam fracos, amiguinhos. Não neguem a natureza humana. 
Era uma época de medo. Sabemos que até mesmo recentemente, dentre os fugidos sírios, havia células terroristas com planos cruéis. Grupos de muçulmanos perpetraram agressões, assaltos e uma onda sem precedentes de estupros onde foram acolhidos. Medo e cautela são elementos nativos de Segurança Pública e de Defesa Nacional. Então aqueles habitantes castigados por dor, fome e isolamento, de certa forma, não agiram diferente de grandes nações quando o assunto é imigração. Nem todo medo do estranho pode ser visto como racismo e xenofobia. Ainda mais naquelas circunstâncias. Você não aceita todo mundo em sua residência. Não abre as portas de sua casa sem cautela. Fale a verdade. Seja sincero consigo mesmo. Você teme o estranho ao seu lado, na rua erma.
O discurso de amar a todos, de que somos todos iguais e que não existem fronteiras pois somos todos terráqueos é, claro, fofo. Na verdade, é batido. Clichê. Frase feita para que possamos ficar bem na fita, como pessoas de bom coração e esclarecidas. Mas a vida real é diferente. Ratifico: não queira lacrar ou ser como o gado, repetindo mantras e lugares-comuns: aceite a natureza humana. Você tem medo de uma sombra na rua à noite, ou de dois caras suspeitos numa motocicleta. Vai realmente afirmar que a conduta dos habitantes do vilarejo não tinha fundamento razoável algum? Como dizem por aí: nos poupe. 
Ainda bancando o Advogado do Diabo: o andarilho poderia ter tomado maiores precauções e ser mais aberto à cultura local, ainda mais considerando que, mesmo com medo, houve uma pálida tentativa dos locais em recebê-lo bem.
Venho, há algum tempo, evitando adquirir edições físicas. Estou aderindo cada vez mais à leitura eletrônica, preferencialmente aquela gratuita. E, para dar uma força a editores como os das VenetaPipoca & Nanquim, tão avessos ao regime de mercado e à liberdade como a americana, sinto-me obrigado a ajudá-los ao menos com um pequeno e nobre ato: deixa de comprar suas publicações, por mais bem caprichadas que sejam. Não falta material para ler em meus HDs, afinal. Se eu tivesse mil vidas, não leria tudo o que quero no meio eletrônico.

Ajude um editor progressista lutando contra o regime de mercado. Não compre HQs. Busque meios gratuitos, ecológicos e alternativos.

Abraços revolucionários, camaradas.




13 comentários:

  1. Esse pessoal do Pipoca e Nanquim é impagável. Quando estão falando de HQ´s são excelentes, ótimos editores também, mas quando se metem a falar de política, deus do céu... não vale nem a pena comentar. Nem preciso me esforçar muito pra boicotar eles porque a maioria dos lançamentos deles não me chamam a atenção, com exceção desse Relatório de Brodeck, mas ta caríssimo, então nem vai rolar. Deles tenho Beastes of Burden, que vou continuar acompanhando e aquele Charlie Chan, que é bem chato.

    Ayako eu gostei muito, li online mesmo porque estava muito caro, li em inglês. A melhor descrição que posso dar pra arte dessa HQ é como se eu tivesse lido Watchmen desenhado pelo Mauricio de Sousa.

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    1. "A melhor descrição que posso dar pra arte dessa HQ é como se eu tivesse lido Watchmen desenhado pelo Mauricio de Sousa."
      Perfeita descrição!

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  2. Agora que me dei conta, é a Kim Kardashian com casaco do comunismo. É o cúmulo, meu deus!

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    1. "É o cúmulo, meu deus!"
      É a canalhice e a ignorância dos progressistas.

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  3. nossa são edições parrudas e bonitas.
    Ayako é compra certa.
    uma pena que o comunismo ainda seja lembrado como algo vintage
    mais uma bunduda querendo dar aula de história: ela fica melhor sem o casaco ;)

    abs

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    1. Concordo com o machista acima, hahaha!

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    2. "algo vintage"
      Ver gente passando fome em Estados socialistas está na moda. Na verdade, nunca saiu. Abç!

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    3. finalmente li Ayako - excelente mesmo
      inclusive estava na antologia de 1001 quadrinhos para ler antes de morrer (https://obscult.blogspot.com/2020/01/lista-1001-comics-2014a.html)

      abs!

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    4. Olha, meu amigo, incluo Ayako dentre as melhores leituras que já realizei na vida!!!!!

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  4. Muito bom esse primeiro parágrafo. Ainda estou tentando diminuir o consumo dos livros e quadrinhos físicos mas o fetiche tem sido mais forte...

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    1. Sem dúvidas, uma edição caprichada nos atrai pelo prazer táctil e deleite estético. Mas com um pouco de meditação, conseguiremos quebrar esse mercado.

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  5. Nenhuma publicação do Pipoca me fez deixar de consumir meus mangás e livros, de certa forma percebia um certo foco e uma atenção redobrada apenas à arte e capricho físico, enquanto o roteiro/estória me pareciam pouco interessantes e medianos ou ruins. Pra mim o mais importante é a estória e desde que a arte não seja terrível e eu dependa muito dela pra compreender o que está sendo contado, tudo bem. Desconfiei da posição política à esquerda após ver o vídeo da Capitã Marvel em que eles fazem inúmeras ressalvas e dizem que é o pior filme da Marvel e depois começam a nivelá-lo de todas as formas possíveis e ressaltam constantemente a representatividade e toda a importância o que caracterizou o viés político, afinal o importante é o filme e independentemente de você concordar com o que ele diz ou não no final bastaria dizer que é ruim como fizeram com outros como Batman vs Superman e outros, mas isso se tornava mais difícil e eles acabavam recomendando e se contradizendo em muitos momentos, de forma que a agenda política e lacração se sobrepunham à qualidade do filme finalizando o enfoque e reivindicação inicial que se provou falsa acerca da tal " lacração".

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    1. O pior pra mim no vídeo do P&N sobre a Capitã Marvel foram eles dizendo que o filme do Pantera Negra era fantástico. Pantera Negra é apenas mais um filme OK da Marvel, mais uma história de origem onde o protagonista enfrenta uma vilão com uma motivação apenas OK e que tem os mesmos poderes dele. Pra mim só se destaca Wakanda e a estética do filme que é legal, de resto é apenas um filme mediano. A indicação ao Oscar foi pura lacração.

      As publicações de HQ´s deles é bem isso que você diz, muita estética e pouco conteúdo. Só peguei duas deles, Beasts of Burden, que eu gostei muito, e Charlie Chan, que achei chato porque é extensa demais e tem metalinguagem demais. Li também Moby Dick em Scan e não gostei. O resto não me interessou, com exceção do Relatório de Brodeck, mas essa HQ é cara demais.

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