domingo, 12 de agosto de 2018

O Demonologista de Andrew Pyper, guerra cultural, milagre e magia




Eu disse que você era esperta. Não que você estava certa.
Fala de David Ullmanm para sua amiguinha


Algumas editoras estão espertas na publicidade de seus lançamentos, com abordagens direcionadas, parcerias com canais específicos e distribuição de alguns mimos. É o caso da DarkSide Books, que, convenhamos, procurou dar ao livro, no Brasil, um pouco de qualidade às obras por ela editadas com caprichos simples, como uma mera capa dura bonitinha e mais esmero na diagramação, além de fonte não tão pequena e o uso constante de papel mais amarelado, que facilita a leitura, diminuindo o cansaço da visão. Em tempos de domínio da leitura eletrônica, o livro, enquanto objeto tátil, precisa seduzir.

Nessa abordagem mais violenta na divulgação de seus produtos, a que se fez sobre os livros de Andrew Pyper foi sangrenta; foram eles Os Condenados e O Demonologista. Basta ver no Youtube a enxurrada de "resenhas" sobre este último. Não irei, aqui, resenhar o romance à exaustão. E demais dados técnicos sobre a edição nacional vocês podem conferir aqui, no ótimo sítio da editora. Quero apenas destacar alguns momentos interessantes desta obra. Interessantes para mim, claro. Talvez sejam igualmente para você...

Na trama, basicamente, David Ullmanm - erudito catedrático de Columbia que vive discutindo o sexo dos anjos - vai à Veneza onde experimenta fenômenos além da razão e perde sua filha pré-adolescente Tess. Para alguém que sempre encarou poemas como Paraíso Perdido de Milton e livros sagrados apenas por curiosidade acadêmica, deparar-se com demônios e possessões representou não apenas uma árdua batalha física (e o coitado como o pão que o Diabo amassou, literalmente), mas, especialmente, uma guerra intelectual e de transformação espiritual; algo como "eu estava errado o tempo todo, ora". Esse erudito é um cara chato e maçante. Além de corno manso. E não consigo respeitar corno manso, pois penso que homens traídos que perdoam e tentam reconciliação estão indo de encontro à natureza masculina. E mais: o sujeito é tão frouxo que perde a única oportunidade de comer sua melhor amiga, mesmo com ela subindo pelas paredes e na iminência da morte pelo câncer. Não sei como tiraram esse sujeito por "herói", sem contar que só escapa no final por obra de um deus ex machina meio forçado pelo autor Andrew Pyper. Ao menos o final foi aberto e ambíguo e gosto de finais assim, pois emula a vida como ela é, onde quase sempre partimos sem deixar todas as pontas amarradas.

Não sou praticante de magia. Contudo, me interesso pelo pensamento mágico e, convenhamos, alguns magos modernos são bem influentes neste Admirável Mundo Novo que se nos mostra todos os dias. Basta você saber olhar em volta. E, num determinado momento da trama, compreendemos que Belial tentou comprovar sua existência com adivinhação. David Ullmanm nos dá um pensamento interessante contrapondo mágica e milagre:
E como o irmão Guazzo, do Compendium Maleficarum, observaria, se milagre é uma das maneiras de o Salvador provar sua identidade, a magia é a maneira de os demônios provarem a deles.
Outro momento igualmente interessante é quando o autor consegue uma associação específica sobre o poema de John Milton, o texto sagrado da queda de Adão pelo conhecimento e a relação entre demônios e sabedoria. É quando o corno começa a levar a mitologia do mal a sério, a fim de tentar salvar sua filha Tess:
O primeiro passo em uma partida como essa é determinar com que versão de demonologia estamos lidando. Velho Testamento? Ou o Novo? Os shedim judeus do Talmude ou os demônios platônicos (espíritos intermediários, nem deuses nem mortais, mas algo entre eles)? Platão, penso nisso agora, definia daimon como "sabedoria". O poder demoníaco procede não do mal, mas do conhecimento das coisas. No Velho Testamento, satãs (pois registros da palavra vêm quase sempre no plural) são como guardas na Terra, colocando à prova a fé dos homens em sua capacidade de serem servidores devotos de Deus. Até no Novo Testamento, o próprio Satã é uma das criações de Deus, um anjo que se extraviou. Como? Pelo abuso da sabedoria. Não foi a partir da escuridão que o Anticristo se formou, mas a partir da inteligência. Presciência.
E, no final do trecho acima, com "presciência", retornamos à ideia de magia (adivinhação, especialmente), como o melhor dos truques que os demônios têm para nos seduzir: tarô, búzios, quiromancia, cafeomancia e outras "mancias" que afloram no universo da mágica pop.

Noutro determinado momento da história, entendi (finalmente!), por que o ativista comunitário (comunista) Saul Alinsky dedicou seu Rules for Radicals ao Capeta. Como ficou claro após algumas décadas de estudos conservadores, a intelligentsia marxista compreendeu que apenas de forma sutil, discreta e com a ocupação de posições estratégicas na vida cultural, acadêmica, religiosa e no entretenimento, poderia consolidar sua revolução. E Pyper/Ullmanm nos dá uma interpretação coloquial para estes versos de Milton: "A mente tem seu próprio lugar, e neste / Pode fazer do inferno um paraíso, do paraíso um inferno": seria algo como "A guerra contra o paraíso nunca foi travada no inferno, nem na Terra. O campo de batalha está em todas as mentes humanas". Para quem não sabe a que me refiro quando associei esta passagem ao avanço do comunismo global, recomendo pesquisar mais sobre guerra política e nomes como Alinsky e Antonio Gramsci, por exemplo.

Eu não iria escrever nada sobre O Demonologista. Acho uma obra meio boba, superficial e finalizada de forma abrupta pelo velho recurso do deus ex machina, como falei acima. Só que, esta semana, chegou minha edição da adaptação para os quadrinhos de Paraíso Perdido por Pablo Auladell e achei legal comentar algo do romance de Andrew Pyper. De certa forma, com esses lançamentos, a DarkSide Books conseguiu conectar seu universo ficcional. Sorte a dos editores se, em algum momento, publicarem o texto integral de John Milton numa edição caprichada.





2 comentários:

  1. "magos modernos" - lembro do exemplo de grant morrison, ela faz(ia) rituais mágicos para tudo quanto é tipo de coisa conforme ele explica no documentário "Talking With Gods".
    https://acervost.blogspot.com/2017/12/documentario-grant-morrison-talking.html

    pessoalmente, fico bem longe de magia e tudo que isso envolve, afinal já me basta a religião com todos os seus problemas.

    "O campo de batalha está em todas as mentes humanas" - e guerra nunca acaba: reforma protestante e massacre de são bartolomeu (os dois lados mataram por nada), revolução cultural chinesa, isso sem falar no "século do ego":
    http://acervost.blogspot.com/2018/03/doc-century-of-self-o-seculo-do-ego-2002.html

    "Paraíso Perdido por Pablo Auladell" - vai ficar linda na estante, tenho que comprar isso.

    abs

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    1. A magia de Morrison é focada na magic pop e sua fixação por sigilos modernos. Acho aquilo meio modinha. Mas... o cara merece uma chance quando fala de magia, pois escreve pra caramba.
      A obra de Pablo Auladell é linda, SCant. Gostosa de se ter em mãos.

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