terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Laranja Mecânica por Anthony Burgess e Stanley Kubrick [ Romance, Cinema, Resenha ]


Meu exemplar, especialíssimo, para mim, por razões íntimas...


Então, o que é que vai ser, hein?

Início das Partes I, II e III

Breve sinopse. Alex é um garoto porra-louca vivendo num futuro distópico onde a dominação do Estado sobre o cidadão não consegue evitar as ondas de violência perpetradas por jovens ociosos. Após ser traído por seus parceiros de arruaças, é preso e se oferece como cobaia a um revolucionário tratamento que purgaria a violência através de uma combinação de drogas e exposição do paciente às cenas extremas de brutalidade. Ao retornar à sociedade, já "curado", o protagonista-narrador enfrenta dificuldades em se ambientar. E, além de ser constrangido a pagar, na pele, pelas barbáries praticadas no passado, torna-se instrumento de propaganda política contra a repressão individual.

Dados bibliográficos. Escrito por Anthony Burgess e publicado em 1962. A edição comemorativa de cinquenta anos da Aleph possui nova tradução de Fabio Fernandes, que apresenta, como introdução à obra, suas notas acerca do trabalho de tradutor para o vocabulário nadsat (linguagem utilizada pelo protagonista ao narrar sua história). O livro possui capa dura com sobrecapa e em torno de trezentas e cinquenta páginas.

* * *

Como a maioria das pessoas, meu primeiro contato com Laranja Mecânica foi através do cinema, pela brilhante adaptação de Stanley Kubrick realizada no início da década de '70. A ultraviolência perpetrada pelo cínico Alex DeLarge chamou minha atenção: assaltos, espancamentos de velhinhos e estupros; tudo isso aliado ao aparente "bom gosto" do personagem, dotado de razoável perspicácia e amante das artes - especialmente da música clássica. O título dado à obra por Anthony Burgess sempre foi chamativo. Laranja Mecânica? No cinema, fica obscuro. Em entrevista, o autor ratificava sua escolha a partir de expressão cokcney para o bizarro: As queer as a clockwork orange (ou: tão bizarro quanto uma laranja mecânica). Entretanto, lendo o romance nos deparamos com o personagem F. Alexander (o escritor, também retratado no filme) e seu ensaio sobre liberdade individual intitulado... Laranja Mecânica. Um trecho confuso desse romance é lido por Alex, quando invade a casa do escritor: "A tentativa de impor ao homem, uma criatura evoluída e capaz de atitudes doces, que escorra suculento pelos lábios barbados de Deus no fim, afirmo que a tentativa de impor leis e condições que são apropriadas a uma criação mecânica, contra isso eu levanto minha caneta-espada..." (p. 67).

Mais à frente, quando Alex - já "curado" após ser submetido à Técnica Ludovico - retorna à casa desse escritor, confere o livro (agora já impresso, e não mais manuscrito), onde discorre um pouco acerca de suas ideias centrais. Os temas "livre-arbítrio" e "liberdade individual" ali presentes têm relação com tratamento a que o protagonista foi submetido. E não demora para que F. Alexander tenha a ideia de usar Alex em ações de propaganda contra o Governo atual. Ainda acerca da "existência mecânica", essas são as impressões de Alex, ao tentar compreender o ensaio (p. 236): "(...) mas o que parecia sair dali era que todos os plebeus hoje dia estavam sendo transformado em máquina, e na verdade eles eram - você, eu, ele e o cacete a quatro - mais como algo que cresce naturalmente, como uma fruta". F. Alexander, ainda compadecido com Alex (sem saber que foi o responsável pelo ataque à sua casa, no passado, espancando-o e estuprando-lhe a esposa, já que sua gangue usava máscaras), vaticina, noutro momento: "Transformar um jovem decente numa coisa mecânica não deveria, certamente, ser encarado como triunfo para nenhum governo, a não ser aquele que se gabe de sua capacidade de repressão." (p. 233/234).

Essa colocação ética também é externada pelo Capelão da Prisão Estadual onde o protagonista cumpre pena durante quase dois anos. Em uma conversa, ele se pergunta, ao comentar o tratamento que purgaria homens de instintos violentos: "Será que Deus quer bondade ou escolha da bondade? Será que um homem que escolhe o mal é talvez melhor do que um homem que teve o mal imposto a si?" (p. 156).

A obra foi originalmente publicada em 1962 e esta especialíssima edição da editora Aleph, editada em 2012 e traduzida por Fábio Fernandes, conta com ilustrações exclusivas de Angeli, Dave McKean e Oscar Grillo. Angeli dispensa apresentações. McKean é o renomado artista gráfico que se tornou mais famoso após parcerias com o escritor Neil Gaiman (autor de Sandman). Mas confesso que desconhecia Oscar Grillo, dono um belo traço! Essa edição ainda nos dá: a) trechos do livro restaurados pelo editor inglês a partir dos originais do autor; b) notas culturais do editor (o que ajuda muito na leitura de maneira mais "densa"; c) reprodução do manuscrito original (apenas seis páginas), com anotações e ilustrações de A. Burguess, entre outras coisas legais. Ah, e o vocabulário da moda "nadsat" criado pelo autor com base em gírias em inglês, russo e delírios é acompanhado de glossário, ao final da narrativa. Acerca dessa linguagem escrota de trombadinhas, o Dr. Branom - personagem que surge na terceira Parte da obra - explica (p. 181): "Alguns fragmentos de gíria rimada. (...) Um pouco de linguagem cigana também. Mas a maioria das raízes é eslava. Propaganda política. Penetração subliminar.". Mas dá para ler o romance sem ir constantemente ao glossário. O próprio Anthony Burgess nunca gostou da ideia de um dicionário nadsat como apêndice à sua obra. É fácil compreender o sentido da maioria dos vocábulos dentro do contexto, de acordo com ritmo de leitura.

Se a "ultraviolência" empregada pelas gangues de rua chocaram no cinema, no romance é algo ainda mais negro. Enquanto Malcolm McDowell tinha 28 anos ao dar corpo a Alex DeLarge na telona, o protagonista e narrador da obra escrita possui apenas quinze quando é preso (idade revelada no final da Primeira Parte). E as mulheres estupradas em diversos momentos possuem, em média, dez anos de idade. Além disso, a descrição do prazer de Alex e seus "druguis" ao ver o sangue jorrado, como resultado de suas ações violentas, é algo que causa um certo impacto no leitor.

A estrutura do romance é a seguinte: três Partes divididas em capítulos. Na Primeira Parte, temos a vida de crime e vagabundagem de Alex - cínico adolescente que sempre se dirige a nós, leitores, como Vosso Humilde Narrador. Na Parte seguinte, vem o castigo a esses atos, com sua temporada na prisão e submissão ao tratamento Ludovico (inovadora técnica de cura para os impulsos violentos). Na última Parte, encaramos a vida de Alex curado e sua "recura" (!). E um detalhe: a edição conta com o sétimo capítulo à Terceira Parte. O texto publicado originalmente nos Estados Unidos suprimiu esse epílogo, onde o Narrador-Protagonista nos informar acerca de sua vontade em mudar, em sossegar a vida e ter uma família. O próprio Anthony Burgess se perguntou, ao finalizar o sexto capítulo, se não deveria parar ali. De qualquer forma, o leitor pode receber esse capítulo como algo "extra", ou um final que - não sendo alternativo, obviamente - é opcional.

O esmero na edição comemorativa é espetacular (sem exageros!). Eu queria uma palavra até melhor para definir a beleza do volume: capa dura com sobrecapa e suas quase 350 páginas em papel cuchê meio fosco, impressas em P&B e laranja. O projeto gráfico é de primeira. Esse tipo de material merece publicidade e espero que os interessados em ler a obra optem por essa edição. Afinal, dá um prazer ainda maior ler assim, com tanto capricho do editor!

Uma curiosidade trazida pela leitura dos extras presentes nesta edição é saber da raivinha que Anthony Burgess nutria pela adaptação realizada por Kubrick. De acordo com pessoas mais próximas, o escritor achava que o Diretor havia se apropriado de sua criação. E isso fica evidente no musical que ele escreveu, em 1987, para o teatro, baseado em seu próprio romance de maior projeção. Em A clockwork orange: a play with music, após a última cena, há o seguinte: "Ele se junta a todo o elenco que segue cantando. Um homem barbado, tal como Stanley Kubrick, chega tocando "Singin' in The Rain" no trompete, em refinado contraponto. Ele é expulso do palco aos pontapés". Ao ler esse trecho estúpido, refleti como um grande escritor pode, às vezes, ser tão pequeno espiritualmente. Foi a adaptação de Kubrick que deu projeção ao autor. Embora tenha publicado aproximadamente vinte livros, a grande maioria dos leitores conhece apenas Laranja Mecânica, justamente pelo interesse que o filme desperta. Quanta babaquice do Sr.º Burgess.

Abraços mecanizados e até a próxima.







2 comentários:

  1. Confesso que vi esse filme com expectativas altas, gostei, mas não achei tão digno da fama que tem. Fiquei curioso para ler o livro. Contrariando o que eu disse no meu último post sobre colecionismo e minimalismo, esse livro eu queria ter na forma física porque é muito bonito!

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    Respostas
    1. "porque é muito bonito"
      Daria pena mesmo se livrar de algo assim apenas para fins de cultivar o "menos". E, no fundo, uma estante com "aqueles" livros e hqs nunca é algo que vai tornar nossa vida difícil pelo excesso de bagagem.
      O filme é bom. Esteticamente, acho-o magnífico. Mas, claro, questão de gosto. Há quem o ache uma grande bosta.
      Abraços!!

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