segunda-feira, 10 de junho de 2019

Boca [ Cinema Brasileiro ]


aquela caverna
triste, fria e sombria
é seu espelho

Marcelo Santos Silvério

Hiroito de Moraes Joanides viveu quase toda sua vida na noite, traficando e utilizando drogas injetáveis - quando nem se falavam acerca dos riscos de compartilhamento de agulhas -, trocando tiros com bandidos rivais e com a polícia (isso quando não a estava corrompendo) e dormindo com praticamente todas as prostitutas da Boca do Lixo, região não-oficial do centro da cidade de São Paulo. Após sua queda como Rei da Boca, ficou trancafiado numa insalubre prisão brasileira por quase dez anos. Próximo aos sessenta anos de idade, após publicar sua autobiografia, faleceu de causas naturais. Ou seja: teve a almejada "morte de passarinho", como se diz em meu sublime torrão. E assim é a vida: você pode procurar a morte durante toda ela e ter apenas um óbito tranquilo, durante o sono, quando perto da imprestável vida chamada de "terceira idade". 

Foi sobre a autobiografia de  Hiroito  Joanides que Flavio Frederico realizou o filme Boca, cujo título em alguns pôsteres, à época (e salvo engano de minha má memória), saiu como Boca do Lixo. Para quem desconhece este cara, trata-se do mesmo cineasta responsável pela porqueira Em Busca de Iara. Ou seja: um diretor que gosta de filmes sobre bandidagem, mas obviamente sem o brilho e a genialidade de Martin Scorsese.

Apenas recentemente assisti a este bom filme. Nada excepcional, mas também não desperdiça nosso tempo. Possui ótima produção de arte e o leva, realmente, para a época "pílula-dourada" do centro paulistano. A atuação de Daniel de Oliveira nos agrada bastante. De início, pode nos parecer meio forçada. Contudo, após breve pesquisa, você descobre que ele realmente encarnou, como pode, Hiroito, em seus trejeitos e arrogância. Uma figura curiosa merecia essa encarnação meio bruta, meio pedante. Seu nome, homenagem de seu pai ao nipônico Imperador Showa, fazia jus - guardadas as devidas proporções - aquele que também se tornaria monarca, conquanto da torpeza. Hiroito foi gângster, viciado em drogas, sexólatra, bem educado, relativamente culto, leitor voraz. Foi um porra-louca que viveu como quis e não pagou a conta, diferente de minha amiga Mariana que, aos quarenta anos de idade, sem fumar ou beber, está amargando câncer de pulmão. C'est la vie.

Não sou grande entusiasta do cinema brasileiro, o qual quase nunca consegue nos entreter descompromissadamente ou, acaso se proponha a mais, tecer algo relevante acerca da natureza humana. O objetivo primeiro da maioria das realizações nacionais é apenas fazer uma "crítica social foda" (como dizem os aventureiros da justiça social), que de fodástica não tem nada e apenas repete os velhos mantras ideológicos de sempre, jamais conseguindo ir além das aparências, jamais chegando ao âmago das questões abordadas. Contudo, neste curto filme Boca, não desperdicei tempo. Trata-se de película curta, objetiva, esteticamente atraente (como afirmei alhures, com boas fotografia e produção de arte) e consegue, sem pretensão, levá-lo ao charme outrora existente de uma grande metrópole, mesmo em seus recônditos mais sombrios.