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terça-feira, 1 de agosto de 2023

Gerald Bernardson, o Mutagene de Homem-Aranha 2099

Em postagem no meu pequeno e obscuro vlog no Youtube, comentei sobre os dois volumes de Homem-Aranha 2099 da Panini e a relevância do título para mim, pois tentei colecioná-lo, quando guri. Quando surgiu o primeiro número em formatinho, pela Abril, juntei as moedinhas, comprei, li e reli aquela HQ insólita (para a época) diversas vezes. Infelizmente, a grana era curta e não pude adquirir os 39 números, entre outubro de 1993 e dezembro de 1996. Neste mesmo vídeo, destaquei os vilões interessantes encontrados no título (v. I), alguns novos e outros repaginados, com destaque para o Abutre e sua trupe de canibais.

No segundo volume de Homem-Aranha 2099, conhecemos o malvadão Gerald Bernardson, codinome Mutagene. Inicialmente, fora um bom homem, dedicado à pesquisa científica e à família. Mas presenciou o falecimento lento e sem explicação de sua filha. Após ver sua vida ir para o buraco, de tanto ficar bitolado em encontrar a causa da morte de sua garota, finalmente a surpresa: o fator degenerativo tinha origem no DNA paterno. Logo, ele seria o culpado. Daí, investiu em mais e mais pesquisas para se tornar o Mutagene, um vilão que se adapta ao meio rapidamente, tornando-se quase invencível. E com o propósito de matar pessoas doente! Sim: de acordo com ele, a medicina moderna proporcionaria que portadores de doenças genéticas possam ter uma vida razoável e, assim, continuar procriando, espalhando genes defeituosos. Ou seja: o cara é um vilão eugenista. A humanidade parara de evoluir porque portadores de defeitos genéticos continuariam procriando. Vilão sombrio, hein?

Matar a saudade de Homem-Aranha 2099 é realmente gratificante. O universo criado por Peter David foi bem edificado para aquela época, nos dando ação, aventura, belas artes e diversão. A trupe de artistas não deixava a desejar. O mundo de 2099 era sufocante: tecnologia a serviço das mãos de ferro do Estado e das grandes corporações, para nos escravizar.

É isso. Achei bacana falar mais sobre o título, mas desta vez de forma escrita para tentar dar um fôlego ao blog. Abraços futuristas a todos e até a próxima.

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Histórias atualmente impublicáveis do Chico Bento


O homem que volta ao mesmo rio, nem o rio é o mesmo rio, nem o homem é o mesmo homem
(Heráclito de Éfeso)

A Turma da Mônica não é mais a mesma etc etc. Sei que, às vezes, somos apenas saudosistas pela ideia de alegria que sentimos quando recordamos nossa infância. É mais ou menos como aquele poema de Fernando Pessoa, onde se conclui: "Com que ânsia tão raiva / Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora". Mas, no caso da Turma, não é só isso. É um trabalho simples de comparação. Pegue histórias da fase Abril e parte do publicado pela Globo e leia bem. Repare na arte, também. Depois, confira algumas edições da Panini. É como comparar ouro com bosta. E o pior: quando republicam histórias antigas em coletâneas, alteram os roteiros e a arte para que se adaptem à política do "politicamente babaca" de hoje. Para mais sobre isso, recomendo a matéria no site Arquivos Turma da Mônica.

É curioso isso: numa época violenta, onde alunos espancam professores, mães colocam filhos em caixas de sapato e a garotada de treze anos de idade promove festinhas regadas a sexo e a drogas, os quadrinhos do MSP cultivam a ideia de que vivemos no mundo do pirulito. É legal essa atitude dos Estúdios? Claro que não; pois, além de alienante (totalmente dissociada da realidade), acaba gerando péssimas HQs, insossas, sem nenhuma graça. As mensais atuais da TM são produtos para pessoas com certa lentidão mental (penso). Sei que há quem goste etc. Respeito o ponto de vista de cada um. Cada um faz o que quer com seu tempo e dinheiro, desde que não prejudique outrem. Se o cara quer aproveitar seus lazer com algo de qualidade, ótimo; se quer ler HQs mensais da Mônica, fazer o quê, né?

Esses dias, estive lendo os gibis # 21 (Eu guardo o que é meu) e # 25 (Tudo que é demais) do Chico Bento (ed. Globo) e vi histórias divertidíssimas que, hoje, não seriam publicadas. E justamente as histórias de abertura: curtas, inteligentes e com ótimo humor. Resolvi até compartilhá-las aqui, para que vocês tirem suas conclusões. Acredito que a primeira seria impublicável por, na cabeça de alguém do MSP, insinuar "pedrophilia" ou outra forma de sacanagem, apenas porque a Rosinha mostra a xana ao Chico e, mais à frente, os garotos ficam-na secando apenas de biquíni. A segunda trama também não encontraria espaço atualmente por ser, eventualmente, taxada de "escatológica"; pois, após encher a cama de mijo, o Chico ainda despeja um barro nas calças, dentro da sala de aula, no último quadrinho da história.

Recordo de uma tirinha onde Chico pede um beijo a Rosinha, não o ganhando porque esta diz ter vergonha. Ele diz "tudo bem" e a chama para nadarem no riacho. No último quadrinho, os dois estão pelados, pulando dentro da água. É isso: ingenuidade, falta de segundas intenções. No universos pueril da Vila Abobrinha, quem eventualmente possui a mente suja é o leitor. Sacrificar boas tramas em nome de fricotes é enterrar belos personagens, criados e amadurecidos ao longo de décadas.

É isso. Não posso postar as histórias na íntegra porque o Blogger não aceita. Mas compartilho os trechos abaixo. Divirtam-se com tramas assim e, depois, chorem pelo que a turma do Maurício se tornou.

Qui cherinho di mijo é esse?


Adonde ocê vai assim pelada?



domingo, 21 de agosto de 2022

Batman Ego Trip por John Byrne

Há dois meses, comentei a respeito da história Batman - Ego Trip no vídeo acima e achei interessante, aqui, trazer a mesma resenha, mas de forma escrita. Então vamos lá.

Os egos em Gotham estão mais inflados/inflamados que nunca. O megahiperaquimilionário Hardiman Twine cometeu suicídio, embora Pinguim tenha gravado um testemunho em vídeo informando ter sido assassinato, enviando-o apenas para conhecimento de Gordon e Batman. Logo, todos os malucos da cidade querem o crédito pelo crime. Começam então as caçadas do Cruzado Encapuzado para compreender o que está havendo no meio de todo esse conflito de vaidades e, ao mesmo tempo, levar à prisão os doidinhos mais famosos da city.

O gibi é simples e até bobo em alguns momentos. John Byrne brinca com a mítica do morcego: o frio detetive que não se abala nem quando Coringa menciona a morte de Robin por espancamento (no caso, não pela PRF brasileira, mas sim pelas mãos do próprio Coringa); que possui uma enciclopédia em seus miolos e poder de dedução sobre-humano; apto para fugir de armadilhas mortais milimetricamente arquitetadas. Tudo o que fez Batman ser quem ele se tornou está na trama, o que nos diverte.

Quando charada prende o Morcegão numa armadilha "letal", onde o fosso vai encher de água até sufocá-lo, ele divaga, enquanto procura meios de fugir: "O Charada e sua corja sempre deixam uma saída; para eles, tudo isso é apenas um jogo, e sabem que, sem mim, ele perde muito de sua graça.". Noutras palavras: é tudo brincadeirinha perigosa de meninos travessos. E, mais à frente, o cérebro alienígena de Batman o faz descobrir que "zzxjoanw" foi um tambor maori curtido em óleo de um pinguim extinto, com propriedades alucinógenas. E, assim, descobre que Pinguim é o culpado pelo assassinato disfarçado de suicídio.

Outro detalhe: Batman sempre pensa em voz alta, para assim dar a oportunidade de ser surpreendido por algum vilão que dará a resposta ao seu pensamento. Algo realmente bem infantil. E essa foi a proposta de Byrne: brincar com o Batman pueril que habita nossas memórias desde à exibição exaustiva da série de TV com Adam West.

No final das contas, Pinguim desejava matar Hardiman Twine desde guri. Ambos frequentavam a mesma escola e o milionário fazia de tudo para tornar a vida do baixinho barrigudo um inferno. Tudo foi vingança tardia pelo bullying sofrido.

No final da história, na mansão Wayne, Alfred serve um sanduíche a Bruce, que se deita sem escovar o dentes (um hábito deveras perigoso), lhe desejando que durma bem, ao que ele responde, já na cama: "Obrigado, Alfred; acho que desta vez conseguirei".

Esta revista chegou a nós pela Opera Graphica, no formato canoa, com 20,5 x 27,5 cm, capa cartonada e miolo em cuchê. Toda em P&B, saiu originalmente na Batman 3D, onde recebeu tratamento químico especial para que a arte aparentasse possuir ter efeitos 3D. O editor Franco de Rosa, ao apresentar a obra, comenta a respeito dessa tentativa e porque não deu tão certo.

Quem puder e quiser, inscreva-se no canal para dar maior visibilidade ao seu conteúdo.

Abraços e até a próxima.


sábado, 18 de junho de 2022

Eu era um lobisomem juvenil


Exemplar de minha coleção.

Creio piamente que Arma X é a melhor história escrita com/para Wolverine e até hoje gosto de relê-la ou ao menos sempre vale a pena folheá-la para apreciar a arte exuberante de Barry Windsor-Smith, o gênio da nona arte que adaptou Conan para os quadrinhos e, no caso de Arma X, também escreveu a história, selecionou as tintas que seriam utilizadas na colorização e ainda tentou dar conta do letreiramento original.

Sempre insisto que Wolverine é um personagem subaproveitado pela Marvel. Sua imagem agressiva, as ações sem fim que proporciona e o impacto das garras rendem bastante grana, vendendo até mesmo lixo. Mas falta algo. Falta alguém colocar as mãos na massa e escrever algo verdadeiramente significativo para o canadense enfezado. Como seria isso? Não sei. Se soubesse, venderia à editora. Mas seria algo similar ao que Barry Windsor-Smith fez em Arma X, só que focando num Logan em si, seu passado "humano", seu cotidiano enquanto membro de uma super equipe uniformizada com collant espalhafatoso, talvez um possível futuro factível, seus dramas e desafios mais íntimos e sombrios. E tudo isso de maneira concatenada: uma saga.

Arma X é uma história perfeita por tudo: arte magnífica, roteiro impecável - onde muito é apenas sugerido ou indicado, exigindo do leitor atenção e até mesmo repaginadas para esclarecer melhor situações -, profundidade (embora não de personagens, mas de situações) e tudo mais o que compõe esta plataforma de mídia que chamamos de gibi, quadrinhos ou mais pomposamente de graphic novel.

Conheci o personagem folheando revistas de meu irmão mais velho. Mas a primeira que comprei em banca, com meu dinheiro, foi Wolverine n° 36, em fevereiro de 1995. Mas a vida de leitor de quadrinhos era difícil e, para continuar seguindo o título, não deu. Ainda mais quando a Abril botava em banca um gibi como Wolverine n° 39, custando R$ 0,30 a mais porque optaram, naquele número, por papel LWC e uma capa mais grossinha, com efeito (era rasgada pelas garras de Logan!). Eu também tentava acompanhar X-Men desde o n.º 72 (1994), mas também parei porque sempre surgia algum outro gibi que queria comprar. Recordo também de ver Wolverine Extra n° 01 nas mãos de algumas pessoas, reunindo todas as partes de Arma X num formatinho com lombada quadrada. Checando no Guia dos Quadrinhos, vi que custava R$ 2,80, o que era muita grana naquela época para apenas 132 páginas em papel jornal.


Para mim, a arte de Windsor-Smith em Arma X foi revolucionária dentro do gênero.

Como sempre, comecei escrevendo este post com algo em mente: expor porque Arma X é um gibi realmente perfeito e, agora, já desandei para outras divagações. Mas tudo dentro do mesmo tema: quadrinhos. Desde que me entendo por gente, por ser pensante que sabe que pensa, descobri as delícias da solidão na leitura. Pouca coisa me dá tanto prazer, até hoje, como ler. É a forma de arte que mais me apetece. E, seja nos momentos mais felizes ou sombrios da minha vida, é na arte onde encontro guarita.

Quando eu tinha em torno de nove ou dez anos de idade, pulei de cima do guarda-roupas de meu quarto, para a cama, acreditando piamente que poderia ser igual ao Homem-Aranha. Se ele podia, eu também poderia, mesmo sem picada de aranha radioativa. Evidentemente me estatelei todo (e no chão) e passei dias dolorido em várias parte do corpo. Felizmente, não quebrei nada. Quando me perguntaram o que aconteceu, menti que cai tentando pegar algo sobre o móvel. A vergonha era grande demais para assumir. Lembrei deste fato relendo algumas histórias (para mim, clássicas) do cabeça de teia, especialmente as escritas e desenhadas por Todd McFarlane - muitos o odeiam, mas não sei o porquê, embora creia que talvez porque ele soube ganhar bastante bufunfa num mercado cruel. E como é bom rever estes quadrinhos e retornar a toda aquele universo mágico perdido. Ainda hoje, há bastante graça nestas leituras. Mas o bom sentimento está justamente nisto: a evocação dos tempos idos. O próprio Todd McFarlane, aliás, andou reconhecendo há pouco tempo como os quadrinhos andam em bancarrota e boa parte disso graças à lacração desenfreada: ausência de sintonia com o público majoritário. E foi atacado por isso. Veja bem: McFarlane é o cara que, ao invés de lacrar com um Homem-Aranha negro, criou um personagem negro campeão de vendas: Al Simmon, o Spawn. É como Frank Miller, constantemente atacado pela turma woke quando, também em vez de produzir mantras vazios, deu à luz uma das maiores heroínas negras de nossa história: Martha Washington.

E ainda falando em Miller, há algum tempo ele ficou de fora de um evento de quadrinhos porque uma cidadã chamada Zainab Akhtar bateu o pé: "se ele participar, não participarei". De acordo com essa jovem senhora, Miller é um reacionário conservador islamofóbico ou algo assim, ainda mais devido ao gibi Holly Terror (tenho na estante, é bonito, bobo e divertido de tão ruim; realmente, trata-se de uma péssima história realizada às pressas e é algo totalmente desnecessário à estante de qualquer leitor). E quem é Zainab Akhtar? Não sei. Nunca vi seu trabalho a fundo. Do pouco que vi, pareceu ser apenas mais uma inútil que nada acrescentou à arte e à cultura. Não passa de autora bosta com quadrinhos grotescos. E bastou ela chorar as pitangas no Twitter que sabotaram um artista do naipe de Frank Miller. Este, aliás, não precisa provar mais nada ao mundo e, ainda vivo (mesmo que em frangalhos), deixou grande legado à nona arte. Miller é um daqueles casos raros de exímio quadrinista puro: se destacou na arte e na escrita, na concepção integral de todo um gibi de cabo a rabo.

O mundo dos quadrinhos anda assim: ignorantes e improdutivos ditando as regras. Costumo dizer que qualquer pessoa com dois neurônios passa longe das atuais publicações mainstream. Até em nichos mais autorais o fedor subiu à estratosfera. Nas poucas vezes que tentei ler algo mais autoral, quebrei a cara, gastando grana à toa e perdendo tempo. Cito, por exemplo, Tetris de Box Brown (2020) e Fun de Paolo Bacilieri (2021). É tudo ruim. Até podemos encontrar algo razoavelmente bom, mas gastamos tempo valioso chafurdando no lodaçal, quando podemos dedicar nosso tempo à leitura e à releitura de caras como Frank Miller, que dificilmente decepcionam. E, mesmo quando fazem lambança, nos divertem.

Esses dias andei lendo O Espetacular Homem-Aranha por David Michelinie e Todd McFarlane, a edição omnibus da Panini. Como é bom rever a arte de McFarlane naqueles gibis que, quando guri, li. Quando comecei a efetivamente comprar gibis DC/Marvel com meu dinheiro (lia mais devido a meu irmão mais velho - o qual, aliás, voltou a ler gibis este ano, perto dos quarenta e cinco anos de idade), Jim Lee e McFarlane eram os caras. Os roteiros nos chamavam a atenção, certamente. Mas a arte era o chamariz. Ainda hoje guardo com carinho X-Men Anual n.° 02 da Abril (1995), com "100 páginas imperdíveis", o qual foi lido e relido e me deu diversas horas de alegria, me deleitando com a arte de Lee, bonita até no formatinho. Aliás, o primeiro gibi que comprei dos mutantes foi no final de 1994. Sei disso porque se tratava do número 73. Guardei a revista bastante tempo, até perdê-la numa mudança.

Conquanto alguns puristas teimem em detratar e destratar McFarlane, sua atuação no roteiro do Aranha foi excelente, ao menos para mim. Ele era apenas desenhista do título O Espetacular Homem-Aranha. Então veio a proposta de, além deste título, outro ser publicado concomitantemente, apenas como "Homem-Aranha", e foi McFarlane que encabeçou os primeiros números com histórias que se fechariam brevemente, como a clássica Tormento. Mas uma me encantou desde guri: Subcidade (Abril, n.º 144, ano de 1995). Mendigos estão sendo mortos por ignaros seres habitantes dos esgotos. Com o tempo, descobrimos que agem assim a mando de Morbius, que atua como um Rei no submundo, pedindo aos pobres-coitados que catem "malvados" na superfície para saciar sua sede por sangue. Só que aqueles seres bobalhões não sabem o que seria um "malvado". Para eles, qualquer pessoa acima dos esgotos é má. São pessoas rejeitadas pelo mundo, desfiguradas e embrutecidas de tantas décadas de reprodução consanguínea. Não deixa de ser tocante, enquanto assombrosa. E McFarlane não poupava esses detalhes, como o incesto nos esgotos. Assim como vemos pessoas cheirando pó nas ruas imundas da grande metrópole ou até mesmo um Peter Parker tarado em viver transando com sua esposa gostosa. Ah, e a Mary Jane de Todd McFarlane mexia com a(s) cabeça(s) da gurizada...

Não reproduzia a beleza de Zendaya, mas dava pro gasto...

Sobre edições omnibus, não gostei da experiência em lê-las. São trambolhos desconfortáveis para manusear, ainda mais para mim, que leio deitado há alguns anos. São volumes que ficam bonitos na estante, sem dúvidas. E é interessante poder compendiar fases de artistas e escritores, longos arcos e sagas, em apenas um volume. Mas, realmente, não rola para mim. Pretendo nunca mais comprar edições tão volumosas.  Acho que 150 (talvez no máximo 200) páginas por volume já está de bom tamanho. Se for cuchê, devido ao peso, 150 páginas já representa uma peleja para o manuseio.

Fico por aqui. Abraços juvenis e até a próxima.

domingo, 16 de janeiro de 2022

Pateta e a vida frugal

 

Não gosto de glamourização da miséria porque residi toda a minha vida em regiões pobres e viajei por outras trocentas igualmente miseráveis. Não é bonito o que fazem por aí, postando casebre de taipa no meio do mato como algo fofo. A vida na roça é difícil. Tudo é inacessível, plantios se perdem por qualquer bobagem e bichos morrem por causas inexplicáveis. Não há beleza em bairros urbanos paupérrimos. Mas, para os adeptos da vida simples em apartamentos milionários e com a delicatessen embaixo do edifício, sempre indico que isso não passa de hipocrisia e que minimalista mesmo é o Chico Bento. Falei sobre isso em Minimalismo de Boutique e não me estenderei mais a respeito.

Como nem tudo na vida é preto no branco, às vezes a área cinzenta me leva a pensar como é bom deixar o mundo físico ruir à nossa volta e apenas aproveitarmos a vidinha besta sem neuras. Explico: sua casa se deteriora, estofados se rasgam, móveis mais vagabundos se estragam. Quanto a móveis, todos os meus são de madeira de lei e nunca se estragarão - exceto os planejados. Nunca gostei de comprar merda para casa, pois, como dizia vovó, o barato sai caro. Mas é necessário falar sobre tudo isso também, até sobre os móveis que se consomem e nos consomem. O que fazemos quase sempre é reformar o barraco, refazer estofamentos e trocar móveis. E isso nos escraviza. Não é tanto pela grana - embora, claro, dinheiro sobrando sempre é bom. É mais pelo estresse, mesmo, de não se conseguir viver em paz com essas coisas velhas, quando nos mesmo estamos ficando velhos, enrugados e doentes.

Esses dias finalizei o gibi 365 Histórias em Quadrinhos da era Disney Culturama. É um gibi fraco, com uma historinha por página, mas com seleção pobre. Mas reconheço ser difícil realizar algo muito bom em apenas uma página. De qualquer forma, ler este gibi aos pouquinhos foi divertido e me alegrou. E, em um dado momento, percebi como Pateta vive bem em seu cafofo, mobiliado com cacarecos e móveis velhos. Pateta sempre foi o personagem mais feliz Disney. Por ter pouco e esperar pouco do mundo, sempre ficou satisfeito com frugalidades, como uma comida boa ou um dia de clima bacana.

Pateta não buscou pelo minimalismo nem dourou a pílula da pobreza. Apenas vive de bem com o que tem à sua disposição da melhor forma possível. Claro que o fato de ser louco também ajuda em sua constante alegria, mas isso é outra história. E algumas historinhas deste gibi, percebi o Pateta sempre com aquele sorriso manso no rosto, quando em sua casinha paupérrima.

Beleza é essencial e coisas bonitas à nossa volta nos fazem bem. Mas a que custo? E o envelhecimento de nossa casa e dos bens que a guarnecem seria assim tão "feio" ou haveria certa beleza nesse processo natural de deterioração? Andei pensando a respeito e concluí deixar minhas coisas envelhecerem sem demais zelos e cuidados. Tomarei cuidados mínimos porque minha filha precisa de conforto e segurança. Então irei com calma nisso. Mas, realmente, não quero mais ficar cuidando de tanta alvenaria, madeira e metal. Cuidar de mim já exige tempo, grana e energia. E mal venho dando conta disso tudo. Ser um pouco Pateta na vida, creio, nos faz bem.

Goofy in Flowery Expectations, ou Pateta em Flores pra Mim?. Roteiro de Gorm Transgaard e arte de  Joaquín Cañizares Sanchez. Código D 2014-090.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

A trollagem mental de Alan Moore

 

 - Como a cultura desmoronou em cem anos?

 - Tornando-se irrelevante como sempre.

Diálogo entre Mina e Orlando em A Liga, Século: 2009.

Em Armada, romance de Ernest Cline, Carl Sagan é personagem e integra um poderoso esquema de ocultação sobre forças alienígenas que ameaçam a vida na Terra. Há alguns anos, ouvi relatos que Sagan sempre mentiu sobre o possível inverno nuclear, por questões políticas e "humanitárias". Não é bem a conduta que esperamos de cientistas. Mas estes são humanos, têm ideários e ideologias e, se junto ao Poder, fazem politicagem igual a um vereador de cidade pequena. Miguel Nicolelis e Drauzio Varella nos representam neste segmento. Se bem que, aí, pesa bastante a grana envolvida.

Grandes mentes podem mentir. De cientistas a artistas e escritores. Ou viverem em constante pilhéria, apenas pela mera curtição. E isso é natural.

Alan Moore escreveu os melhores quadrinhos por mim lidos. Para refundar a nona arte, foi precedido por quem a fundou. Não se "desconstrói" algo não edificado. Em dado momento, contudo, até ele se cansou dessas constantes desconstruções e pulou fora do barco, para se dedicar a coçar o saco, fumar maconha e adorar ao deus Glycon no porão de sua casa (a qual, dizem, fede à urina de gato). Alan Moore sumiu do mapa e resolveu destilar veneno ao mercado que ajudou a consolidar. Se leitores mais maduros se mantiveram fieis aos gibis, isso se deve em grande parte a Alan Moore, ao semeado por ele e seguido por dezenas de escritores.

Não acompanho mais muita coisa do ermitão urbano. Quero ler Jerusalém, mas para isso preciso de tradução, pois não posso encarar quase mil páginas de Alan Moore em sua língua. Ele ainda hoje se mostra insuperável e não acredito que outro igual surgirá tão cedo. Mantenho com carinho todos seus gibis lidos e sinto falta de alguns gibis antigos dos quais me desfiz. Vez ou outra, vejo algum vídeo com o autor, onde ele se expressa sobre o mundo à sua volta, e percebo que ele mente metade do tempo e, na outra metade, se mantém o grande fanfarrão de sempre. Alan Moore está trollando com tudo e todos mesmo quando parece falar sério.

Pela segunda vez vi a entrevista abaixo. E ficam evidentes as "contradições" do barbudão. Num dado momento, se mostra globalista, apoiando mundo sem fronteiras e questionando até mesmo um "casal de amigos íntimos" que se tornou conservador e votou favorável ao Brexit. Logo após, destaca a importância do fortalecimento local (algo parecido com o municipalismo brasileiro), com comunidades fortes e unitárias, meio fechadas em si, pois elas sim conhecem suas histórias e problemas. Ao renegar os filmes desmiolados com super-heróis, imputa a infantilidade norte-americana ao público conservador que está indo aos cinemas ver tais produções. E daí aponta que a herança global de Margaret Thatcher (que mulher, senhores!) é causa da geração de retardados que assolam o mundo. Em resumo: na primeira assertiva sobre o Brexit, está trollando; na segunda, mente sobre a premissa da oligofrenia contemporânea para justificar sua ânsia pela refundação do mundo.

O caipira americano eleitor de Trump não está lotando salas de cinema para assistir ao Homem-de-Ferro apoiando ambientalismo, pautas LGBTQI+ e raciais. Ele está preocupado com sua criação de porcos, se o ano será propício ao plantio e em fazer seus ajustes anuais de tributos. Quem consome a cultura pop atualmente produzida por Hollywood é justamente a massa de manobra progressista. Qualquer pessoa com dois neurônios passa longe da produção cultural atual. Moore sabe disso.

Não gosto de crentes perto de mim. São pessoas que me aporrinham. Mas defendo todas as formas de culto, inclusive a de Glycon. Pessoas mentalmente fracas precisam de sistemas religiosos para fundamentar suas vidas, sair do alcoolismo e parar de bater na esposa. Logo, religião é bom, em regra. Para não variar, o britânico ataca cristãos. Seu temor ao "fundamentalismo" religioso nunca se estende às culturas orientais ou a muçulmanos. O problema é a beata de seu bairro ou o carinha que doa 10% de sua renda ao Pastor. Isso é desonesto. Ainda mais vindo de um xamã. Conheço muito bem os sistemas mágicos sobre os quais se baseiam as obras da invasão britânica dos quadrinhos (Moore, Morrison, Gaiman etc.). E acho estranho xamãs (e "neopagãos") criticando os mais ferrenhos cristãos.

Alan Moore salienta a necessidade de mudanças. Para onde? Ninguém sabe. Mudar acima de tudo. Adiante e avante. É a meta do progressismo: sempre adiante, mesmo que para o fundo do abismo. E assim chegaremos ao fim da História. Mas ele é ressentido sobre o desprezo atual pelo clássico e pela História. Ele critica expressamente o desapego ao passado. Curioso, não é? Como ninguém o confronta, ele já se contradiz abertamente e ainda dá um sorrisinho.

Alan Moore não mudou. Continua mentindo e trollando o mundo à sua volta, torcendo pelo circo pegar fogo e é uma pena que não tenhamos mais grandes obras suas, dentro dos quadrinhos. Como performático, não perdeu a mania de mudar sua fisionomia quando comenta se o chá está bom ou se Tony Blair era realmente um cara maneiro que tocava Beatles no violão. Para seu desagrado, Promethea ainda não surgiu para refundar o mundo à sua imagem e semelhança, Miracleman ainda é apenas Micky Moran - homem classe média preocupado em pagar os boletos em dia - e, no coração de cada americano médio, mora um Comediante.

O casal de amigos íntimos criticado por Alan Moore, no mini-doc abaixo, o conhece bem, de tantos chás e cafezinhos que tomaram juntos. Seu pensamento, conheço após quase vinte anos de releituras de suas obras.

Por hoje é só, pessoal. Abraços.

Sugestões de postagens:

1. Miracleman: há algo de podre no reino editorial

2. A Voz do Fogo [ romance de Alan Moore ]

3. Do Inferno [ Alan Moore e Eddie Campbell ]

4. Pog de Alan Moore e Pogo de Walt Kelly

5. Encadernados brazucas de Alan Moore

6. A Liga Extraordinária, Século: 2009

terça-feira, 15 de junho de 2021

A decisão de Cascão [ Quadrinhos ]

 


A Turma da Mônica é a grande realização de Maurício de Sousa, gênio da nona arte que criou o belo universo do bairro do Limoeiro, as turmas da Mata e do Penadinho bem como o universo pré-histórico que adoro: Piteco e seus amigos primitivos, habitantes de Lem, e o pequeno tiranossauro filósofo Horácio. Além disso, não posso deixar de fora meu amado Chico Bento e os caipiras da Vila Abobrinha. Para quem não sabe, conquanto não produza mais quadrinhos de próprio punho, Maurício é excelente escritor e desenhista. Basta conferir sua produção autoral.

Até metade dos anos '90, todas as revistas do Maurício de Sousa Produções (MSP) eram boas ou ótimas. Não recordo de gibi ruim. Mas com o tempo isso mudou. Os estúdios abraçaram a pauta engessada do politicamente correto e tudo perdeu a graça. Assim, por exemplo, o povo da roça não pode mais caçar nem cortar lenha. Todos são amigos da "Mãe Natureza". Como se usar gás de cozinha e comprar em supermercado fosse ecológico! O mesmo vale para os índios Papa-Capim e Cafuné. Mônica não é mais tão agressiva, Magali evita exageros gastronômicos, Cebolinha trata a dentuça com bastante deferência e, além das pautas lacradoras, a arte está sofrível, com praticamente carimbos digitais em cada página. As capas que eram piadas (gags) tornaram-se meras referências às histórias principais. Afinal, pra quê pensar demais ao se produzir gibis?

Neste mundo insosso, Cascão agora até é limpo. Evita tomar banhos, mas às vezes retira a sujeira e alerta para os benefícios da assepsia. Isso porque as crianças poderiam deixar de tomar banho lendo gibis. É como porque deixaram de representar ratinhos com formas fofas: os guris poderiam sair por aí catando ratazanas e beijando-as no focinho, no mundo real. Quanta bobagem. Isso mais ainda se considerarmos que Um Amor de Ratinho é uma das histórias clássicas de Mônica, inclusive adaptada para o cinema numa animação fofinha e lançada em formato livro infantil.

Esses dias, reli a HQ Cascão n.° 47 (editora Abril), publicada em maio de 1984 e republicada em 2015 pela Coleção Histórica. A partir da capa já vemos como era fantástico o trabalho do MSP: o sujinho de penetra na Arca de Noé, para escapar das águas. E, no miolo, dentre tantas histórias bacanas, temos até espaço para divagações metafísicas, num experimento quadrinístico onde divagamos com uma gota de orvalho. A história "A Decisão" foi escrita por Maurício de Sousa e desenhada por Beto. Em quatro páginas com repetição de requadros, o artista optou por ilustrar um a um, sem recorrer a reprodução mecânica de copia-cola (paste-up). Cascão, ao ver a gotinha de orvalho na iminência de cair sobre sua cabeça, divaga como o acontecimento poderia mudar tudo. Ele se tornaria outra pessoa: "Tudo muito simples! É só ficar parado aqui e pronto! A minha vida vai mudar totalmente.", resume. E conclui: "Mas quem disse que eu quero mudança?". E a gotinha que poderia mudar tudo ficou lá, durante quatro requadros, aguardando evaporar e não sobrar mais nenhum traço do que ela poderia representar.

É isso. Em 1984, Cascão optou por ser ele mesmo. Mas bastou a pauta de engajamento lacrador chegar aos Estúdios e tudo se perdeu, sem mais explicações, de forma abrupta. E toda a mitologia construída por Maurício e sua equipe de profissionais competentes foi por água abaixo (sem trocadilho).

Li uma postagem de 2009 escrita por alguém que não é leitor contumaz dos títulos MSP e que teve em mãos, por acaso, um gibi da Turma da Mônica Jovem. Ali, ele mostra seu assombro pela castração da identidade dos personagens e elabora excelente reflexão sobre o paradoxo do politicamente imbecilizante: a pretexto de respeitar as diferenças, Maurício tolheu os aspectos mais intrínsecos de seus personagens, tornando-os todos iguais. E, assim, abandonou a grande lição da vida: nos aceitarmos como somos e sabermos lidar com nossas diferenças. Se tiverem interesse, confiram no A Marreta do Azarão.

Abraços assépticos e até a próxima.





segunda-feira, 3 de maio de 2021

Dois Mil e Um Chopes, HQ de Thiago Ossostortos

 


Só depois de muito tempo
Comecei a entender
Como será meu futuro
Como será o seu...

Ira em Dias de Luta

Quando eu era guri, meu tio Dorival comprou um MP Lafer em bom estado. Hoje, sei que esses carros são caros. Mas ele sempre soube ganhar dinheiro com facilidade. É daqueles homens sem o primeiro grau escolar concluído e cheios da grana, pois sabe se dar bem em todos os negócios onde investe. Cheguei a ver este mesmo tio vendendo urgentemente um de seus empreendimentos (restaurante) porque o local deu tão certo que vivia cheio de clientes ao ponto de estressá-lo devido à logística. Ele também possuía um belíssimo Fusca Baja superequipado e penso que apenas aqueles pneus traseiros dariam para comprar meu carro atual. O MP Lafer acabou ficando direto com minha prima mais velha, Deise, que o pintou de rosa-choque e passou a chamá-lo de Astrogildo, devido à telenovela global onde tal carro fazia sucesso com este mesmo nome.

Em Dois Mil e Um Chopes, o autor/protagonista nos diz que seu pai possuía veículo idêntico. No final da história, há até fotografia "de prova". Além disso, como tudo em Ossostortos, somos inundados por recordações daquela época quando o mundo parecia mágico e constantemente inovador. Está tudo lá: videolocadoras movimentadas com pôsteres de Matrix, A Vida É Bela e O Troco ou, na banca de revistas usadas, os formatinhos de Arma X e Batman Lobo. Curioso: o cara cresceu em São Paulo (Capital e interior) e sua vidinha besta não foi diferente da que tivemos no interior de Pernambuco. A fórmula mágica do quadrinista deu certo novamente neste gibi em formato de cardápio de choperia (livreto com bolacha de chope inclusa): espremer suas memórias, compartilhá-las conosco e nos levar ao passado (nem tão perto, nem tão distante).

Na trama, o candidato a quadrinista narra período de sua vida onde precisou residir em São José do Rio Preto e como saiu de lá para, sozinho, para tentar a sorte em Sampa, indo morar na pensão de Azani, personagem essencial de sua HQ anterior Mjadra. Certamente, seu Messias (pai do Thiago) também é figura relevante. Não com tanto destaque como em Os Últimos Dias do Xerife, certamente. Mas é que, aos poucos, todos esses quadrinhos compõem um grande mosaico da vida do artista. De certa forma, ele está escrevendo sua autobiografia em pedaços e técnicas variadas (lápis e nanquim tradicionais, guache, rabisco-decó colorido etc.). E vem sendo agradável acompanhar tudo. Torço para que continue produzindo por anos a fio, pois seu trabalho foi uma grata surpresa para mim, leitor. E pensar que cheguei a comprar seu primeiro gibi porque o confundi com outro autor de quem, há anos, comprei um fanzine.

Num dado momento, Thiago vê Guns N' Roses tocando no Rock In Rio 2001 e mostra sua estranheza com a nova formação. Foi o mesmo sentimento que tive quando assisti (pela TV) e vi aquela banda capitaneada por um Axl Rose bizarro e, no lugar de Slash e Izzy Stradlin, o medonho Buckethead.

São muitos momentos condensados em poucas páginas, mas todos onde pude me localizar. Recomendo bastante este lançamento para quem pretende dar chance à produção nacional (a qual, em maior parte, anda uma lixeira). Além das HQs acima mencionadas, sugiro também Kombi 95. Aliás, no acervo de meu tio Dorival também havia uma Kombi!

Fico por aqui. Abraços tortos e até a próxima.




domingo, 18 de abril de 2021

Uma Vida Chinesa, HQ de Ôtié e Kunwu

Delícias do comunismo...

O quase subtítulo de Uma Vida Chinesa ("De Xiao Li a Lao Li") nada mais quer dizer do que "Do Pequeno Li ao Velho Li". Trata-se, pois, de visão das profundas transformações chinesas, desde a insanidade da Revolução Cultural até o desenvolvimento financeiro (mas jamais humano) conquistado após a morte de Mao Tsé-Tung, com melhorias notáveis em relação à mortandade existente devido à fome extrema, ausência de higiene básica e expurgos (linchamentos públicos, detenções em campos de concentração e execuções sumárias).

Penso nada chamar tanta atenção no comunismo quanto à fome massiva, onde grande parte da população falece devido à falta do mínimo para dormir de estômago forrado. A documentação acerca do canibalismo na Rússia pós-revolucionária é farta hoje em dia, sem contar o Holomodor ucraniano. Em relação à China maoísta, dados oficiais apontam em torno de 10 milhões de mortes decorrentes de inanição. Imagino os dados reais, além dos oficiais. Acredita-se que na Coreia do Norte, ainda hoje, pratique-se o canibalismo de entes queridos recém falecidos. É muita proteína para se jogar à terra. E, neste gibi, a fome é retratada de maneira crudelíssima - como foi, ora - por quem a testemunhou, o Pequeno Li, hoje artista gráfico consagrado.

Sempre me interessei por Deng Xiaoping e seu pensamento à frente do tempo, dentro do Partido. O comunismo se converte em seu oposto tantas vezes quando for necessário, consumindo-se em seu processo dialético, onde todos os meios são válidos para a saúde do Partido, seus líderes e classe burocrática. O fim sempre foi concentração de poder num partido hegemônico, controle social intenso e supressão da individualidade. Deng Xiaoping acreditava no capitalismo dentro da vida chinesa, pois ele seria apenas mais um meio dentre tantos, sem prejudicar a essência do regime; pelo contrário, lhe dando força e sobrevida. Não é à toa que o líder político foi perseguido pelos maoístas mais ferrenhos, enfrentando anos de fuga e isolamento.

Enquanto poucos membros da intelligentsia comunista ao redor do globo percebiam que o capital era apenas a superestrutura do sistema ocidental a ser combatido, Deng Xiaoping  e seus asseclas já o sabiam. E por isso foram vitimados pela insanidade da Revolução Cultural e seus expurgos. Estes, prática comum dentro dos delírios do comunismo, impingindo humilhações públicas, linchamentos e mortes por razões quase sempre obscuras ou até mesmo inexistentes. Os expurgos no stalinismo, por exemplo, eram realizados a toque de caixa, por meros cálculos matemáticos: determinada parcela de dado povoamento, considerando sua estimativa populacional, deveria ser executada. Simples assim. Com isso, aos poucos, mudariam o tecido social e isso precipitaria a revolução ao "fim da História", seja lá que merda for essa. É muita loucurinha nessas cabecinhas vermelhas.

Xi Zhongxun, pai do atual líder político chinês Xi Jinping (o pai da Covid 19, conhecido graciosamente por Ursinho Pooh), foi vitimado por vários expurgos, entre idas e vindas à vida ativa dentro do Partido. E assim foi com o pai do autor/protagonista deste gibi, Li Kunwu (o pequeno e velho Li do subtítulo). Seu genitor, de membro ativo do Partido a escravo numa colônia de reeducação, retornou à vida pública ocupando bons cargos tão logo o pensamento de Xiaoping se sobrepôs ao de Mao Tsé-Tung: dinheiro, propriedade privada e mercado seriam necessários para a vida chinesa dominar o mundo com sua doutrina. Que doutrina é essa afinal, nos tempos atuais? Controle social intenso, burocratas ricos, capitalismo de compadrio. Só. O marxismo muda ao sabor da ocasião e continua sendo comunismo mesmo assim.

Vemos a revolução chinesa, de Mao até os tempos modernos (O Tempo do Dinheiro, como diz o autor desde a capa do terceiro volume), pelos olhos do ilustrador de jornal e propagandista Li Kunwu, com auxílio do francês Philippe Ôtié nos roteiros e direção técnica.

Felizmente, esta obra nos chegou pela WMF Martins Fontes. A maioria das editoras lacradoras que possuímos, certamente, jamais publicaria algo assim. Mesmo que, dentre tanto sofrimento e a previsão de povir endinheirado igualmente sinistro, Li Kunwu conclua sua narrativa feliz consigo mesmo, por ser chinês, viver o modo de vida chinês na China e estar na China. É e foi a única existência conhecida por ele: uma vida plenamente chinesa. E ele está em paz com isso.

Os volumes são divididos em I. O Tempo de Meu Pai, II. O Tempo do Partido e III. O Tempo do Dinheiro. As capas de cada volume explicitam a evolução social: de casebres miseráveis a arranha-céus, com Li Kunwu envelhecendo enquanto pinta murais publicitários: o grande Mao e o período revolucionário; o desenvolvimento econômico pós Deng Xiaoping e, finalmente, a arte do autor/protagonista empregada em publicidade privada (campanha de água mineral, com mulheres modernas e empoderadas).

O trabalho editorial ficou bacana: volume em capa cartonada com orelhas, fontes generosas, miolo em papel meio amarelado similar ao pólen bold e tudo com boa gramatura. Os três volumes vêm acondicionados num box meio fraquinho, mas o qual ajuda na organização do material. Andréa Stahel M. da Silva traduziu todas as três partes para nossa língua, publicadas entre os anos de 2015 e 2017. E aí está a parte ruim de ir comprando obras assim aos poucos: você perde a unidade de leitura, lendo-as aos pedaços, e ainda perde o box para acondicioná-las.

Optei por vídeo (abaixo) para melhor exibir os livros, no lugar de fotografias.

Abraços famélicos e até a próxima.

domingo, 11 de abril de 2021

Uma balada para o Mancha Negra

 

Imagem de meu acervo particular.

O hoje é distante da infância, mas aqui e ali, pelas colinas, aperto bem sua mão, que encurta distância.

Emily Patinson, em Poemas

Pateta Repórter é uma série de histórias publicada originalmente, na Itália, entre 2009 e 2015. Com roteiro de Teresa Radice e arte de Stefano Turconi, as tramas envolvem o protagonista atrapalhado realizando reportagens para o poderio midiático A Mancha Matinal, de propriedade de ninguém menos que Basil Blackspot (um dos vários nomes do arqui-inimigo disneyano Mancha Negra). Sempre sem querer, totalmente por acaso, Pateta consegue grandes furos jornalísticos, vai-se consolidando como maior repórter da cidade e, igualmente sem querer, constantemente mela os planos maquiavélicos de seu empregador e da gangue coordenada por Bafo-de-Onça, seu braço direito no mundo do crime.

Além dos ótimos roteiros, as quinze histórias contam com arte primorosa, merecedora do formato grande (16,5 x 24 cm), papel couché e capa dura. Foi um daqueles álbuns "de luxo" publicados pela Abril antes de sua falência. Pela própria editora, o título havia saído três anos antes (2013), em formatinho vagabundo e com cinco histórias a menos, excluída aí a que considero a melhor: Verão na Lagoa Verde, um conto que aborda de maneira poética parte da infância do vilão Mancha Negra. Certamente, por ainda estar inconclusa na Itália, o formatinho brasileiro não teria como ser a edição definitiva. Isto foi obtido nas 484 páginas da publicação de 2016.

Nesta história, o magnata das comunicações despacha Pateta por três meses para que ele escreva algum livro, visto todas suas matérias venderem a rodo. Além de embolsar grana com a publicação, Mr. Blackspot pretende se livrar de Pateta para que este não arruíne seu mais novo golpe: levar agricultores de um pequeno povoado à falência, comprar-lhes as terras e, assim, edificar grandes centros urbanos no local. Típico clichê de quadrinho infantil, claro.

Enquanto Pateta, de férias forçadas, aluga a pequena casa do lago, pertencente à família de Candy Mousengulp, a gangue de Bafo-de-Onça vai tocando o terror com os habitantes do vilarejo, usando pequenas tramoias: cupins, ursos e outros "acidentes". Assim, em pouco tempo comprariam as terras por ninharia. Mas, certa tarde, Pateta encontra uma caixa de biscoito embaixo do degrau falso da escada. Nela, achamos: o livro da poetisa Emily Patinson (brincadeira óbvia com o nome da poetisa americana Emily Dickinson), um diário sem nome de proprietário e uma pena para escrita, além de bolas de gude. Pateta mostra o achado a Candy. Ela diz se lembrar de quem era: quando criança, um menino alugava a residência da Lagoa Verde com os pais, para temporada. Então ela recorda como se divertiam e como ela lhe apresentou a poesia, inclusive emprestando o livro de Emily Patinson. Mas, de acordo com ela, de repente, aquela família sumiu sem aviso e jamais retornou. Como vemos nas reminiscências de Basil Blackspot, seus pais fugiram para o Paraguai após bem sucedido assalto a banco. Saindo assim às pressas, ele nunca pode devolver o livro a Candy, sua amada amiga.

Durante a história, conhecemos bastante do pensamento de Manchinha, à época, lendo-lhe o diário. Ele se apaixonou pelo vilarejo, a natureza, o belo céu cheio de estrelas, a poesia de Candy e, claro, pela própria Candy. Num dado momento, ele confessa que até seus pais ficavam mais felizes, quando no campo. E que na cidade apenas havia amargura, em meio a tanto concreto e asfalto.

Então chega o dia de Pateta retornar à cidade grande. Candy ainda não se recorda do nome do menino, mas recorda de seu sobrenome. Assim, manda Pateta levar a caixa pois, como está num grande jornal, talvez consiga devolvê-la ao dono, pesquisando sobre a família. Dentro da caixa, ainda encontra-se o livro de poemas. Já n'A Mancha Matinal, no escritório do magnata, Pateta diz não ter escrito livro nenhum mas que trouxe algo interessante, dispondo a lata sobre a mesa do patrão, o qual fica atônito. Nosso Pateta não é tão pateta assim e, sagaz, ainda avisa ao chefe que esqueceu de devolver a chave da casa na lagoa, praticamente esfregando-a no focinho do poderoso Mancha. Este diz possuir assuntos a resolver na região e poderia fazer o favor de entregá-la. Aí o restante é mais do que previsível: ele revisita a casa da Lagoa Verde, onde sentia-se realmente feliz, e depois bate à porta de Candy, agora casada e mãe de dois filhos. Assim que ela o vê, relembra seu nome e demonstra bastante alegria. Não sabemos se eles chegaram a conversar muito. A história dá um salto e mostra Candy com o livro de Emily Patinson em mãos. Basil Blackspot foi apenas devolvê-lo, após tantos anos de atraso. E, de dentro do volume, cai um cheque recheado de zeros - para que as famílias locais se recomponham dos prejuízos causados por suas ações mesquinhas, penso.

Num dado momento - e certamente não por acaso - é citada a família Thoreau. Henry David Thoreau foi o escritor naturalista que, preocupado com o êxodo rural excessivo e a dependência das grandes cidades e suas tecnologias, refugiou-se por alguns anos às margens do lago Walden, onde construiu sua própria habitação, plantou e produziu tudo o que consumia. Não há como dissociar isto dos anseios do então mancebo Mancha Negra. Ele queria apenas viver naquela casa velha, à margem da Lagoa Verde, plantando, colhendo e amando sua Candy.

É uma bela história e vale a pena conhecê-la.

Abraços líricos e até a próxima.







sábado, 20 de março de 2021

Quadrinhos de Charles Burns

Dias chuvosos

Chovia uma triste chuva de resignação.
Manuel Bandeira

Era como se eu visse o futuro. 
E o futuro não fizesse nenhum sentido.
Black Hole

A imagem acima é da janela do quarto de minha filha. Ela quase não utiliza o próprio quarto, exceto para brincar algumas horas ao dia. E desde que nasceu dorme comigo. Acho que chegará à adolescência assim, dormindo com os pais. Se fosse menino, tentaria forçar que dormisse só. Mas garotas podem se dar ao luxo de ser um pouco medrosas e querer o afago paterno enquanto dormem. Então quem usa bastante seu quarto sou eu, lendo ao lado desta janela fortificada. Meti grades aí por garantia porque ninguém sabe o dia de amanhã. Daí pra frente, não há quase casas, exceto algumas esparsas dentro de pequenos roçados. O local é tranquilo e o maior perigo sucedido próximo da janela foi uma jiboia.

Os dias estão chuvosos. Isso certamente é muito bom para quem planta, cria animais e precisa de florada nos próximos meses para produção de mel. Além disso, é quando barragens públicas e privadas serão abastecidas. É assim, igualmente, onde mantemos vivos lençóis freáticos. Não preciso falar sobre os benefícios das chuvas. Todos sabemos. O único problema é que estou com obras em casa e a chuva atrapalha. Neste exato momento, estou com dois pedreiros ali fora, com os braços cruzados admirando este belo dia de chuva. E receberão do mesmo jeito.

Dias de chuva são para estar em casa de boa, tomando café, fumando e, claro, lendo. E esses dias andei lendo e relendo bastante coisa. Aqui, destaco o trabalho insólito de Charles Burns, feliz descoberta em minha vida.

Meu primeiro contato com Charles Burns foi num pequeno conto encartado no estranho gibi Little Lit: Fábulas e Contos de Fadas em Quadrinhos, publicado pela Cia das Letras (acho que ainda não existia o selo Quadrinhos na Cia) em 2003. Tenho este gibi ainda hoje, devidamente guardado. A revista gringa Raw editava material regular de Burns, devido à amizade entre este e o casal radical chic Art Spiegelman/Françoise Mouly. E Little Lit reúne material da Raw. A "história" se chama Sustolândia e me passou quase desapercebida de tão ruim: na verdade trata-se de uma grande ilustração em página dupla, onde você deve encontrar ovos e serpentes! Vai entender...

Em meados de 2010, numa gibiteria em Recife, conheci Black Hole, em dois volumes pela Conrad. E, cara, pensei porque não tive a oportunidade de ler algo assim quando mais jovem. Mesmo adulto, me envolvi com a trama: adolescentes contaminados pela "praga juvenil" adquirem deformidades variadas (alguns se tornam monstros) e precisam se retirar, habitando matagais. Fui realmente tocado pela trama de dor e solidão de todas aquelas personagens, bem como pelos laços de amizade mostrados. Me senti com 15 anos de idade, entre meus saudosos amigos. A arte em elevado contraste (muito branco, muito negro) de Burns nos prende a atenção a cada página. E, claro, como não gostar de suas mulheres magrelas e peludinhas (bem old school). Sou entusiasta de xoxotas peludas, cada vez mais raras.

Depois, Black Hole saiu em volume único pela Darkside e, obviamente, comprei. Estou evitando comprar papel. Falei bastante sobre isso. Mas comprarei tudo o que sair de certos autores. Um deles é Charles Burns. A Darkside publicou, ainda, antologias de contos como Big Baby e e El Borbah. Certamente, comprei ambos os livros. Sua magnum opus continua sendo Black Hole. Devido à idade avançada do autor, penso que jamais fará algo tão bom, superando a si mesmo. Quadrinho exige bastante tempo e dedicação. Não é tão "simples" quanto apenas escrever, como enfatizou Lourenço Mutarelli.

Desde 2018, podemos ler a tradução de Sem Volta, pelo Quadrinhos na Cia. E tudo colorido. É o segundo melhor trabalho do autor, numa trama entrópica (a melhor palavra que me vem à cabeça para defini-la), com homenagens que vão d'As Aventuras de Tintim a William S. Burroughs. Não exatamente homenagens. As referências são essenciais à trama, bastante parecida com Daniel Clowes. Em Sem Volta, temos uma história dentro de uma história dentro de outra história e, aparentemente, infinita (sem fim, "sem volta"). Como sempre (parecido com as tramas de Chris Ware), temos homens brancos fracos perdidos na vida, mulheres putianes (fortes e determinadas), bizarrices inexplicáveis e todo mundo meio que se fodendo. Um retrato do ocidente contemporâneo, afinal. Parece lacração vazia, de longe. Mas não é. É a cara do ocidente e sua covardia, onde homens pequenos se rastejam para mulheres borderlines que já rodaram em dezenas de carrosséis de pirocas. A gadice masculina não possui tamanho e merece ser retratada cruamente.

Percebo que muita gente não gosta do autor. Acho que o apego ao mainstream faz isso conosco. Além de tudo, muita gente não se entrega fácil a enredos onde a realidade e o nonsense caminham lado a lado. E às vezes esses arroubos avant-garde parecem meio forçados por intelectualóides sem conteúdo, apelando ao insólito apenas porque não sabem mesmo realizar algo bom. Mas creio não ser esse o caso de Charles Burns e que, sim, vale à pena se dar à sua obra, em especial Black Hole e Sem Volta.

É isso. Só deu vontade de recomendar esses quadrinhos porque nunca escrevi nada sobre o cara e andei relendo suas obras. Também sondei o artbook Free S**t do artista. Mas ainda não o comprei. Se já leu dele e desgostou, dê outra chance.

Abraços e até a próxima.


Big Baby

El Borbah

Black Hole

Sem Volta


Sustolândia em Little Lit

quarta-feira, 10 de março de 2021

O Homem Invisível de H. G. Wells e Alan Moore


Cena de The Invisible Man (1933)

"O Senhor Wicksteed era um homem de quarenta e cinco ou quarenta e seis anos, intendente de Lord Burdock, de aparência e hábitos inofensivos, de modo que seria a última pessoa no mundo a provocar um antagonista tão terrível. Contra ele, o Homem Invisível usou uma barra de ferro que arrancara de um pedaço partido de cerca. Abordou o pacífico homem, que calmamente voltava para almoçar em sua casa ao meio-dia. Atacou-o, destruindo suas frágeis defesas, quebrando-lhe o braço, derrubando-o no chão e esmagando-lhe a cabeça até que se tornasse geleia."

Acho que o primeiro filme onde vi boa concepção d'O Homem Invisível foi no excelente O Homem Sem Sombra (2000, locado em VHS). Na verdade, à época, foi excelente para mim. Hoje, acho-o meio fraquinho. Mas ali estava toda a essência da obra de H. G. Wells, adaptada para o mundo contemporâneo. O cientista interpretado por Kevin Bacon torna-se extremamente cruel e insano, como efeito colateral à sua invisibilidade irreversível. Depois, conheci o "verdadeiro" Griffin em A Liga Extraordinária de Alan Moore e Kevin O'Neill. Entre tantas mentes malignas e até mesmo alienígenas, Griffin (mesmo integrando grupo de heróis vitorianos) desponta como o pior dentre os piores. Sua primeira aparição é habitando, escondido, uma escola para moçoilas, onde se passa por assombração para estuprar geral. No segundo volume d'A Liga, barbariza Mina Murray e, por isso, tem seu final tragicamente selado pelo Dr. Jekyll/Hide, com todos os ossos do corpo trucidados e, ao final, enrabado pelo monstro, deixado para morrer em agonia (e arrombado).

Não havia lido a obra primeva de H. G. Wells, até recentemente. E, colegas, Alan Moore foi certeiro naquela representação. O trecho transcrito acima evidencia como o físico é sádico. Contudo, antes mesmo de ingerir a fórmula, o sujeito era mau. Totalmente indiferente às pessoas, por exemplo, levou o pai ao suicídio ao roubá-lo. E fez questão de não tentar limpar sua honra na cidade onde morava e faleceu afamado por ladrão. Em dado momento, ainda zomba do suicídio, atribuindo-o à fraqueza do genitor.

N'A Liga, me causou estranheza que, após o último suspiro de Griffin, seu sangue aparece nas roupas de Hide e em todo o canto. Foi uma licença à ideia original de Wells. O sangue coagularia normalmente mesmo com seu dono ainda vivo. No romance, o louco invisível explica a seu amigo Kemp acerca disso: "É um grande incômodo ver meu sangue espalhado por aí, não é? Ocorre que ele se torna visível quando coagula. Modifiquei apenas o tecido vivo, portando a invisibilidade só durará enquanto eu viver.". O autor também tenta explicar o procedimento de invisibilidade de todos os tecidos com algo acerca de ótica e refração da luz. Achei interessante, aliás. Ao menos para a época quando foi publicado (1987).

Similar aos quadrinhos de Moore e O'Neill, o final do Homem Invisível também é trágico no romance. Só não rola, certamente, o enrabamento forçado. Aliás, é bom notar que Moore possui uma fixação esquisita por violação...

Outro aspecto da obra que poderia ser melhor aproveitado nos quadrinhos é o problema em estar invisível enquanto se digere alimentos, recebe gotículas de água, neve e sujeira. Isso acaba se tornando um inferno na vida de Griffin, além de passar bastante frio e machucar os pés nas longas caminhadas. No excelente filme Memórias de Um Homem Invisível (de 1992, visto por mim diversas vezes na Sessão da Tarde, mas que não considero meu primeiro contato o Homem Invisível próximo da concepção original, por se tratar de comédia e Chevy Chase ser vítima e não vilão), esses incômodos são explicitados. Há cena neste filme, aliás, que lembra o romance, além dos problemas com comida: o ato de fumar: "Depois de comer, e fez uma farta refeição, o Homem Invisível pediu um charuto a Dr. Kemp. Mordeu a ponta rudemente, antes mesmo que Kemp encontrasse uma faca para cortá-la, e queixou-se quando a folha do revestimento afrouxou. Era estranho vê-lo fumar. Era possível ver a boca, a garganta, a faringe e as narinas moldadas em uma fumaça espessa que rodopiava dentro dele".

No cinema, ao menos Chevy Chase tornou-se invisível junto com sua roupa e assim evitamos vê-lo peladão. Quando puderem, confiram o filme. Representa bem o auge de um tipo de comédia que se perdeu no tempo e ainda contamos com a beleza jovem de Daryl Hannah.

Em resumo: gostei de ler o romance. Não supunha ser tão bom. Via-o apenas como ficção científica e me deparei com puro terror. Além disso, a edição da Pandorga ficou excelente. Evito comprar livros impressos, mas naquelas promoções onde mal se paga o frete, adquiri o belíssimo box. Os livrinhos tiveram belíssimo trabalho gráfico, com capas super coloridas emulando livretos pulp e quadrinhos juvenis. O artista brasileiro responsável chama-se Butcher Billy. Na caixa, ainda temos A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos.

Acerca da arte, infelizmente fica claro o artista desconhecer os livros. Vê-se claramente que sua concepção artística se deu sobre garimpo digital de filmes antigos. Sua concepção de Morlocks (humanóides d'A Máquina do Tempo), por exemplo, se baseia no filme de 1960, totalmente discrepante da obra escrita. Prefiro pensar que este foi o objetivo, num trabalho de capista cujo objetivo seria, justamente, remeter a pôsteres cinematográficos. Vai-se saber...

Não falarei sobre os dois outros romances (novelas) nesta postagem. Talvez noutra. Mas destaco me chamar atenção a apresentação de A Máquina do Tempo, onde os editores ressaltam que a civilização mostrada ali, no futuro (ano 802701, onde os Eloi(s) habitam na superfície e os Morlocks nos subterrâneos, "escravizados" para manter a vida boa dos "de cima"), constituiria "feroz crítica à sociedade industrial" da época do autor, pois este foi inspirado em Marx e era "conhecido defensor de ideais socialistas". Até aí, ok. Mas e o restante? Não compreendo a tara dessas editoras em advogarem comunismo a todo custo. Quando a novela foi escrita (publicação em 1895), sequer havia regime de mercado como hoje. Além disso, Wells morreu em 1946 e não testemunhou a abertura dos arquivos de Moscou, os números dos expurgos de Mao e Pol Pot e sequer chegou a saber do Holomodor (encoberta por anos a fio). Acho perigoso quando a esquerda festiva utiliza figuras do passado para enaltecer ideologias macabras. Aliás, penso que, atualmente, A Máquina do Tempo representaria bem o comunismo: Os Morlocks (cidadãos comuns) ralando por migalhas para manter os Eloi (políticos, burocratas e amigos do Partido).

Ademais, não há sistema de exploração no romance. Veja bem: de acordo com o Viajante no Tempo, a sociedade evoluiu em paz durante eras: "Os ricos enfim seguros com suas riquezas e confortos, os trabalhadores seguros com suas vidas e trabalhos.". Só que, num dado momento, o sistema degringolou: a aristocracia se deu cada vez mais a atividades meramente frívolas e emburreceram e os operários, proprietários de todo o maquinário no subsolo, passaram a supri-los em troca de alimentos. Ocorre que a carne passou a rarear e apenas os Eloi eram frugívoros. Logo o hábito ancestral do canibalismo retornou. E os Eloi, mais fracos, passaram a ser caçados durante a noite. O Viajante chega a enxergá-los como rebanho que pasta feliz durante as manhãs para, sem advertência, servir de alimento à raça mais forte: justamente os Morlocks.

Ao final da obra, o editor destaca os ideais feministas de Wells e, novamente, repete sua ideologia socialista (o cara seria quase o Fiuk!). Faltou um pouco de pesquisa, como sempre. H. G. Wells gozou de bastante prestígio ainda vivo e, logo, se inclinou aos ideais fabianistas, integrando a elite intelectual por trás da Sociedade Fabiana: pobres e classe média não deveriam existir se não para ser direcionados pela nata intelectual e econômica. Destaco que fabianistas célebres defenderam publicamente genocídios de "raças inferiores" e "pessoas inadequadas". Bernard Shaw, v.g.,  se esforçou para criação de gases letais que facilitassem a execução de homossexuais, negros, ciganos e povos subdesenvolvidos. Pois é... Wells era adepto do socialismo (fabiano).

Conhecido defensor de um mundo sem fronteiras, empreendeu bastante energia pelo fim de soberanias nacionais em prol de uma Nova Ordem Mundial, algo deixado claro em seu A Conspiração Aberta e em artigos e palestras. Felizmente, possuímos uma dessas palestras gravada, onde os ideais fabianistas do autor, que nada tinham de "amor ao próximo" - mas, sim, a implantação de um governo global - ficam claros para quem fez o dever de casa além dos livros made in MEC. E este Governo não existe sem totalitarismo, supressão cultural, expurgos e demais males de todo pensamento revolucionário.

Destaco ainda uma pérola encontrada logo no início d'A Guerra dos Mundos. Ao narrar a extinção de bisões e dodôs causadas por nós, pessoinhas más, o autor cita a dizimação dos aborígenes tasmanianos, da seguinte forma: "Os tasmanianos, apesar de sua aparência humana, foram varridos da face da Terra em uma guerra de extermínio empreendida por imigrantes europeus (...)". Destaco: "apesar de sua aparência humana". Enfim, por mais que algumas pessoas queiram dar lições éticas (lacrar, como falamos atualmente), em alguns momentos sempre deslizarão em suas convicções mais sombrias. Ainda pensei que poderia ser equívoco na tradução. Então fui em busca do texto original e achei: "in spite of their human likeness". C'est fini!

É isso. Desconhecia totalmente o escritor britânico e me surpreendi com sua prosa fluida e agradável, bem como com as bases científicas bem fundamentadas. A presença de seus escritos vê-se em toda a cultura pop (cinema, quadrinhos, jogos etc.). Achei que seu nome fosse sempre recordado pela natureza de precursor. No entanto, estava errado: sua prosa é notável até para o dias atuais. Fica a sugestão de leitura, ainda mais para quem gostou da concepção de Griffin n'A Liga Extraordinária.

Abraços invisíveis e até a próxima.