quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Onde os velhos não têm vez [ Romance de Cormarc McCarthy ]

Imagem de meu exemplar com selo Anton Chigurh de aprovação.

No meio do deserto texano uma negociação milionária de heroína marrom dá errado. Todos morrem. Um veterano do Vietnã - Llewelyn Moss - está caçando na região, depara-se com a cena e leva para casa mais de dois milhões de dólares. Em seu encalço, é enviado Anton Chigurh. Sua função é recuperar a grana. O cartel, com medo da atuação solitária e talvez inconsequente de Chigurh (Sugar?) contrata Carson Wells para entrar na busca. E, seguindo os rastros de todos, está o Xerife Bell (Ed Tom para os íntimos), homem deslocado de seu tempo e assustado com a natureza dos crimes que vêm despontando à sua volta e até mesmo no aparentemente pacato condado onde reside com a esposa Loretta. E esse "deslocamento" tem a ver com título original da obra (No Country for Old Men), obviamente. Mesmo assim, gostei da tradução brasileira para a adaptação cinematográfica: Onde Os Fracos Não Têm Vez. Achei mais abrangente para a história de uma sociedade acuada e bestificada, cada vez mais consumida pela violência gratuita ou por motivos torpes. Quando o livro saiu pelo selo Alfaguara, o filme dos irmãos Coen ainda estava em produção. Acredito que, se já estivesse ao menos em fase de exibição, a editora Objetiva teria optado pelo título cinematográfico brasileiro.

O que mais chama nossa atenção ao primeiro contato com o livro é sua estrutura formal confusa. Parece roteiro mal escrito de cinema. Dentro de um parágrafo narrativo, falas surgem abruptamente sem travessão ou aspas. Numa sequência de diálogos, citações são organizadas sem auxílio de pontuação regular. Se o leitor não ficar atento, acaba se perdendo em meio à bagunça. Contudo, não chega a ser uma dificuldade hercúlea como já falaram por aí. Basta, somente, compenetração com a leitura, nada mais. Acredito que deve ter dado trabalho à escritora Adriana Lisboa na tradução. A prosa é curta (em torno de 250 páginas, com fonte e espaçamento generosos) e dá para ler tranquilamente em duas noites. O papel amarelado similar ao pólen também auxilia bastante a ler tudo rapidamente sem cansar a visão.

Acho que um grande mérito (são tantos) do romance é a "construção vazia" do pistoleiro Anton Chigurh, muito bem interpretado na película por Javier Bardem (Friendo?). Levando consigo um tanque de pistola pneumática para matar gado e uma carabina de alto calibre com silenciador, deixa rastros de sangue sem dó por onde passa. E, quando não tem arma à mão, vai com essas limpas mesmo, como na primeira execução da trama: algemado, por estrangulamento. Ele não age por grana. Seu interesse é meramente profissional. Sua profissão é sua filosofia de vida. Isso fica mais evidente no romance, onde conhecemos até mesmo o destino dado ao dinheiro recuperado e à outra passagem também suprimida no filme: como ele foi preso inicialmente, o que o levou a ser detido por uma simples patrulha local para fugir logo em seguida. O personagem contraponto é o Xerife Bell. Assim como Chigurh, ele também é exímio profissional, e tenta ser o melhor no que faz: aplicar a lei, atuando de forma ética em respeito a cada centavo pago pelo contribuinte de seu condado. Seu código moral é rígido: honrar a memória de seu falecido pai, fazer sempre o correto, manter elevados valores conservadores atualmente tão em baixa (adiante falarei melhor disso). Não foi mostrado no cinema, mas o personagem possui um fantasma do passado o sufocando desde que retornou da Segunda Grande Guerra. E esse detalhe só engrandece ainda mais o personagem.

Tanto no livro quanto na adaptação, vemos o Texas como o principal personagem de toda a trama. Isso me lembra um pouco o nordeste brasileiro. Num determinado momento, o tio Ellis comenta como aquela terra é cruel e, mesmo assim, todos a amam. Quanta ingratidão! A religiosidade texana está presente no xerife Bell, em seu temor divino como fundamento de disciplina, na crença de que toda a violência crescente possui contornos apocalípticos.

Sem dúvidas, é uma grande obra. Vale a pena tê-la na estante para reler. Até onde sei, não teve reimpressão desde 2006. Vi que em várias livrarias já está rareando. Então, se você pensar em comprá-lo, o faço logo. A não ser, claro, que possa ler a versão original em inglês ou goste da plataforma eletrônica. Meridiano de Sangue (romance considerado por muitos sua opus magnum) esgotou. Entretanto, informaram que teria reedição para logo. Talvez façam o mesmo com Onde os velhos não têm vez. Mas... uma curiosidade: de McCarthy possuo apenas este livro na estante. Li A Estrada (adaptado para o cinema com Viggo Mortensen no papel principal) e Meridiano de Sangue no formato eletrônico. Esta postagem é republicação de alguns anos e, até hoje, não vi tais relançamentos. Então já sabem, né? Alguns livreiros estão pondo a brochura de Meridiano de Sangue à venda por até trezentos reais! Depois ficam com a edição encalhada e se queixam da queda de vendas nos sebos.



Como falei acima, Ed Tom possui valores ético rígidos. Isso fica evidente a cada linha. Ele não é um fanfarrão. É honesto mesmo. Algumas pessoas acreditam que Cormarc McCarthy denuncia o genocídio indígena do oeste americano em Meridiano de Sangue. Ele não denuncia nada. Ele apenas narra fatos e tem conhecimento de que não haveria expansão ao pacífico mediante diálogo com nativos. Estes, aliás, tão sanguinários quanto seus opositores. A América pertencia às nações indígenas assim como pertencia aos filhos e netos americanos do que chegaram ali para colonizar. É só História de um tempo de expansão e mudanças. Não há marco sem sangue. E, no princípio, Caim matou Abel - a um custo alto. Para quem acredita que o maior escritor vivo americano quer "denunciar", "problematizar" ou, pior, mudar o mundo a todo custo (ao invés de compreendê-lo e fazer sua parte), transcrevo o trecho abaixo, onde o Xerife Bell responde a uma progressista o que o futuro lhe reserva. Cormarc McCarthy é, essencialmente, um conservador descrente no porvir.
Há um ano ou dois eu e Loretta fomos a uma conferência em Corpus Christi e eu me sentei ao lado dessa mulher que era esposa de alguém mais ou menos importante. E ela ficou falando que a ala da direita isso e a ala da direita aquilo. Não tenho nem mesmo certeza sobre o que ela queria dizer. As pessoas que conheço são na maioria gente comum. Gente simples. Eu disse isso a ela e ela me olhou de um jeito estranho. Achou que eu estava dizendo uma coisa ruim sobre as pessoas, mas é claro que isso é um grande elogio na minha parte do mundo. Ela continuou e continuou. Por fim ela me disse o seguinte: não gosto do rumo que este país está tomando. Quero que a minha neta possa fazer um aborto. E eu disse bem minha senhora não acho que precise se preocupar com o rumo deste país. Pelo que eu vejo não tenho muitas dúvidas de que ela não só vai poder fazer um aborto como vai poder fazer com que sacrifiquem a senhora. O que mais ou menos encerrou a conversa.
Os monólogos a seguir também são interessantes.
Loretta me disse que escutou no rádio sobre o percentual de crianças neste país sendo criadas pelos avós. Esqueci qual era. Bastante alto, achei. Os pais não queriam criar. Conversamos sobre isso. O que nós pensamos foi que quando a próxima geração vier e eles também não quiserem criar seus filhos quem vai criar? Seus próprios pais vão ser os únicos avós disponíveis e esses pais não quiseram criar nem os próprios filhos.
(...)
Tinha um questionário perguntando quais eram os problemas em dar aulas nas escolas. (...) Os maiores problemas eram coisas como conversar em sala de aula e correr nos corredores. Mascar chicletes. (...) Quarenta anos depois. Bem, eis que chegam as respostas. Estupro, incêndio criminoso, assassinato. Drogas. Suicídio. Então eu penso sobre isso. Porque boa parte das vezes em que eu digo qualquer coisa sobre como o mundo está indo para o inferno as pessoas meio que sorriem e dizem que estou ficando velho. Que esse é um dos sintomas. Mas meus sentimentos a esse respeito são que alguém que não saiba a diferença entre estuprar e assassinar pessoas e mascar chicletes tem um problema maior que o meu.
Bem... pessoas de movimentos sociais psicopáticos não gostam muito quando encontram trechos como os acima na obra de um grande autor contemporâneo, ainda vivo. Incomoda saber o óbvio, para onde toda a atuação de grupos cada vez maiores de pessoas sem o menor resquício de espiritualidade (logo, de humanidade) está nos levando. E, vejamos: a trama se passa no início da década de '80, com primeira publicação em 2005. Diferentemente do escritor, não me considero um completo conservador em amplo aspecto (social, político etc.). Mas, como ele, sou descrente na maioria das vezes. Acho que, por mero medo e preguiça, não podemos mais recuperar o que perdemos. Acabou.

Em todo o volume, encontrei apenas um erro. Não de tradução (até porque nem tenho parâmetros para isso), mas de digitação e, logo, revisão. Está no primeiro parágrafo da página n.º 233, onde se repete a passagem "Xerife Bell, ele disse" uma vez.

No cinema, chama atenção como a beleza árida presente nos romances de Cormarc McCarthy foi transportada, o que nos surpreende logo na cena inicial (vídeo abaixo), em brilhante trabalho do diretor de fotografia Roger Deakins, vencedor do Oscar por Blade Runner 2049.

Basicamente, é isso.

Abraços e até a próxima, friendos.

4 comentários:

  1. "Imagem de meu exemplar com selo Anton Chigurh de aprovação." - ficou bem legal e deu vontade de criar mosaicos personalizados como esse para ilustrar os post: um misto de imagens pessoais e não pessoais em torno do tema da postagem

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    1. Tem que ter o toque pessoal. É como postar a foto do meu exemplar quando poderia apenas usar a imagem de press release da editora...

      Abraços!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Os caras metem pra dentro bagulhos como se nao houvesse amanhã.

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