domingo, 11 de agosto de 2019

Terror e encanto em Dylan Dog



Esta história acabou em sangue, como em sangue havia começado. 
Se não são lírios, são sempre filhos. Todos vítimas deste mundo.
(DyD #383, Profondo Nero)

O primeiro a abandonar A Ilha Que Nunca Existiu das vastas Terras do Nunca foi o temido Capitão James Hook, seguido por seu nêmese réptil. Os marujos tomaram, cada um, rumos oposto. Aos poucos, os meninos perdidos também se foram, viver mundanalmente. Sereias partiram para o show business e, enfim, os nativos locais tornaram-se militantes, ativistas no louco ocidente do mundo real, cobrando fictícias "dívidas históricas". Wendy morreu de velhice junto aos meninos humanos e, um dia, Peter Pan sumiu com Tinker Bell. A Ilha Que Nunca Existiu passou, então, a existir, ocupada por empresas, famosos em férias, instituições financeiras e resorts. Já em Londres, muito tempo depois, meninos perdidos, agora idosos, tramam planos macabros para se tornar novamente jovens. Logo, passam a ser executados um a um e apenas o contramestre Smee atenta para isso, nutrindo medo que achem ser ele o responsável. Como proteção, busca os serviços do Investigador do Pesadelo, e aí está feita uma ótima trama dylandoguiana, impecavelmente executada por Michele Medda (roteiro) e Luigi Piccato (arte). Trata-se d'A Batida do Tempo (#08, série regular).

Ao destacar Dylan Dog, sempre invoco sua fluência entre esta realidade onde habitamos e o onírico, onde, oras!, igualmente habitamos. Assim, no cotidiano, DyD é o operário que precisa pagar as contas, mas adoece e, no leitor hospitalar, trava conhecimento com A Mãe de Todas As Doenças em sua forma feminina: sádica, sensualmente trajada em couro e muito, mas muito carente. Ele conhece o típico velhinho enfezado que detesta pessoas mal educadas, só que as punindo de maneira brutal - e sobrenatural - devido à falta de gentileza e mostrando ao detetive o que é o Horror. DyD, ao ver sua ex namorada definhando devido à Aids (DyD n.° 88, Uma Vida Por Outra), barganha com a Morte. Em curtos diálogos acerca de assuntos aparentemente banais - porém, mágicos - ele nos dá lições de Magia do Caos. Esta edição é outra assim: somos levados a nos encantar com o mundo mágico do garoto que não cresce, piratas e fadas ensandecidas. No meio de tudo isso, há sangue e o terror do estupro coletivo. No final, há redenção para todos e aquela deixa sobre o tempo inexorável que a tudo derrota, até mesmo atingindo criaturas mágicas. Li A Batida do Tempo e, infelizmente, não posso escrever mais pois entregaria o melhor do enredo. HQ dos tempos áureos do herói.

Dylan Dog, em sua nova série, está de ruim a mediano. Contudo, as publicações "antigas" (foram de ontem!) são em sua totalidade - sem exageros de minha parte - de ótimas a excelentes. Só penso que a Mythos poderia editar tudo em volumes tipo biblioteca histórica, com livros mais volumosos e, para baratear, em miolo pisa-brite. É meio burro, nos dias de hoje, com tantos scans, fazer isso mês a mês em offset e a quase trinta paus cada revista.

Do investigatore dell'incubo, também li a boazinha Prelúdio para Morrer, escrita pelo grande Dario Argento e com arte magistral de Corrado Roi. A trama gira em torno de assassinatos, aristocracia britânica e, em meio a tudo isso, a turma do sadomasoquismo. Sobre Argento, basta destacar ter sido um dos escritores de Era Uma Vez No Oeste, entre tantas outras coisas de uma época onde o cinema era mesmo bom. E Corrado Roi, hoje, é o maior artista de DyD. Contudo, Prelúdio para Morrer é HQ relativamente fraca, mas onde a Mythos meteu capa dura e papel nobre para encarecer o produto. É disso que sempre falo: más escolhas editoriais. Insisto que tudo poderia sair em material similar à coleção histórica, com algo em torno de três números por volume. Ainda quanto a esta HQ, penso que Dario Argento desliza bastante ao insistir em críticas sociais à nobreza de uma terra que não é sua. Os ingleses estão felizes com Reis e Rainhas, ora. A vida dos Príncipes vende bem nos tabloides e ninguém se incomoda, ali, com títulos nobiliárquicos e a existência da Câmara do Lordes. Mas Argento pensa que sim e joga na aristocracia a culpa pela imundície humana, sem perceber que, seja rico ou pobre, o ser humano é quase sempre um merdinha e apenas mediante força de vontade e meditação talvez evolua. Conheço rico boa praça e pobre escroto - e vice-versa. Esta é a vida.

Outra trama sensacional, ainda não publicada aqui, está disponível no Canal Delmak-O (Vídeo Gibi). O Preço da Carne retoma o mote nuclear de DyD: zumbis. Contudo, faz isso de uma forma bem fora do convencional e com contornos mundanos: sexo, violência contra mulheres e prostituição forçada. O mais bacana é que a história nos remete ao antigo conto do cemitério amaldiçoado de onde todos retornam, em clara referência ao romance Dellamorte Dellamore de Tiziano Sclavi, onde o coveiro Francesco Dellamorte se apresenta como protótipo do que viria a ser Dylan Dog. Neste gibi, inclusive, há menção à semelhança entre o investigador e o ator Rupert Everett, protagonista da adaptação do romance para o cinema e base para os traços de Dylan. Para mais sobre isso, leiam aqui a postagem acerca do filme. E o final da história não foge ao principal aspecto da mitologia do personagem, diante do Horror, da necessidade de tomar decisões difíceis, um pouco de ternura e, por que não!?, encanto.



Quando afirmei que a nova série, sob a batuta de Roberto Recchioni, não anda bem das pernas devido à mordaça do politicamente correto, não exagero. O canal Delmak-O publica bastante coisa da nova fase e, ali, vocês podem comparar. Esses dias, lendo Um Velho Começo (#3 da Nova Série), encontrei até mesmo algumas indiretas sobre isso no roteiro de Michelle Medda (mesmo escritor de A Batida do Tempo). A trama precisa ser podada - dos limites do insosso ao estúpido - para se adequar às diretrizes da nova linha editorial. Os prints acima falam por si.

Entretanto, vale a pena acompanhar as novas histórias? Sim. No meio de material mediano, podemos encontrar bons momentos de puro entretenimento e, claro, DyD é aquele tipo de personagem sempre bacana para matar alguns minutos. Como afirmou Alan Moore certa vez, o bom escritor deve se mover na ficção, jamais na mentira. Boas narrativas devem encontrar amparo emocional no leitor de maneira que, por mais fantasiosas que sejam, pareçam críveis. Aí reside a Magia, o poder da imagem e das palavras. E Dylan Dog é aquele personagem que transita no fantástico com pés no chão, não ridicularizando a inteligência de seu leitor.

Fico por aqui. Abraços e até a próxima.

Postagens relacionadas:
Imagem de meu acervo pessoal, com obras aqui citadas.

7 comentários:

  1. O que vale é a presença. :-)

    E fica a sugestão para que conheça este título. Abraços e boa semana também!!!

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  2. Boa, uma antologia está se formando
    Ficarei atento a novas postagens sobre o personagem
    Talvez esse blog ajude
    http://arquivodylandog.blogspot.com/

    Abs!

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    1. Já conhecia o blogue. O cara começou bem e logo parou de postar. Uma pena.
      Torço é para que as pessoas digitalizem cada vez mais material inédito e até mesmo toda a primeira fase Mythos, vendida por aí a preço exorbitante e que não será republicada.
      Abraços!!!

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  3. Eu comprei Prelúdio para morrer porque os Youtubers de HQ's rasgaram elogios à obra e eu nunca tinha lido nada do Dylan Dog. A arte realmente é sensacional, mas achei a história bem mais ou menos. Me desanimei com o personagem.

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    1. Micro, nunca vou pelo que esses caras dizem. Só me decepciono. Acho que rola é jabá. Essa HQ é como eu disse acima: "boazinha". Qualquer outra das mencionadas é muito melhor. Arte é o de menos. Falo sério. Quero é roteiro, boas histórias, mesmo que o sujeito use arte com palitos.
      Não desanime. Há muita história boa com DyD, muita mesmo.
      Abraços!

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  4. Olá! Dylan Dog é bom demais(acompanho desde a época da editora Record).
    Confesso que não me animei muito com essa nova fase, mas os clássicos são
    sensacionais!Ainda não li esse "Prelúdio para Morrer", escrito pelo Maestro
    Dario Argento. Uma das obras primas de Argento, "Deep Red", foi lançado aqui
    na terrinha como "Prelúdio para Matar"...Aliás, Dylan Dog, na minha opinião, pode ser
    considerado um "Giallo", aqueles filmes de suspense/terror amalucados e surreais que fizeram a
    fama do Argento, você conhece? Fica a sugestão para uma postagem...
    Abraços e parabéns pelo excelente Blog!
    Claudio

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    1. Olá, Cláudio. Seja bem vindo.
      Gostei bastante desse seu comentário enriquecedor à postagem e espero que retorne a este site e comente mais. Isso faz a diferença, vez que acaba complementando a "matéria".
      Não conheço bem a obra de Dario Argento. E há algum tempo preciso dar conta desse atraso. Sobre Deep Red, tem relação com a escolha do título, aqui, de Prelúdio para Morrer. No original, é Profundo Negro. Seria uma referência a Profondo Rosso (Deep Red). Como, no Brasil, optaram por Prelúdio para Matar, então a Mythos preferiu seguir assim... Prelúdio para Morrer!
      Sobre seus apontamentos, fazem todo o sentido, vez que Dylan Dog tem, em seu protótipo, o coveiro do romance Dellamorte Dellamore, cujo texto é bastante cinematográfico e foi adaptado para o cinema com título homônimo por Michele Soavi.
      O surreal e o onírico são elementos constantes em toda a curta mitologia do personagem.
      Quanto à nova fase, você realmente não está perdendo muito em não acompanhá-la.
      Abraços e grato pelo elogio!

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