sábado, 24 de agosto de 2019

O Cemitério Maldito de Stephen King [ Cinema, Romance ]



Sometimes dead is better.

A morte é um mistério; o sepultamento, segredo.

Vi Cemitério Maldito (1989) pela primeira vez quando era criança. Gostava de filmes de terror. Era meu gênero preferido. Depois, assisti à continuação e também gostei. Hoje, percebo como são produções fracas. Mesmo assim, o primeiro filme guarda certo valor estético e até mesmo detém elementos que agradam ao novo público. Contudo, após você ler o livro, percebe como a adaptação é pobre. E isso porque o roteiro também foi escrito pelo Rei do Maine. Não tenho aquelas firulas acerca da necessidade de adaptações fiéis à obra escrita. Destaquei isso, por exemplo, numa postagem antiga (confira). Penso que são plataformas distintas e, muitas vezes, querer ser fiel à obra primeva pode ser má escolha do cineasta. E aí, creio, está o erro de King: manter o roteiro similar ao livro, mas enxugando bastante a narrativa, o que tornou a produção meio insossa. Se optasse por caminho oposto (pegada mais afim com aspectos notadamente cinematográficos, respeitando limitações e características próprias da tela), talvez tivesse escrito filme melhor.

Ao enxugar todos os elementos introspectivos essenciais à narrativa e manter apenas ações nas telas, Stephen King nos deu uma trama que, creio, poderia ser superior. Mas isso parece lhe fazer o estilo, acredito. Pelo que percebi em diversas entrevistas com o autor, para ele, mexer demais na obra escrita não é bem vindo. Para que Pet Sematary fosse rodado, por exemplo, o escritor exigiu o cumprimento à risca de seu roteiro e que as filmagens se dessem no Maine. Além disso, por diversas vezes, criticou Stanley Kubrick por O Iluminado, enquanto acha que a adaptação subsequente, feita para a TV, foi melhor. Discordo do autor quanto a isso; e considero a obra de Kubrick a melhor adaptação de uma obra de King. Aliás, Stanley Kubrick foi o único a ter peito para transpor a atmosfera densa dos livros de King para o cinema. Quase tudo o que já se adaptou por aí ficou meio-boca. Convenhamos, claro, que muita coisa da obra original é difícil de se digerir no cinema, ainda mais porque estúdios buscam sempre reduzir a classificação etária para atrair público mais abrangente. Hoje, penso, isso é bobagem. Afinal, baixam-se toneladas de informação de graça pela internet e cinema tornou-se um passatempo não mais tão empolgante (e relevante) quanto antes. Imagine, por exemplo, Cemitério Maldito com a fala abaixo incluída no roteiro:
Norma morreu e não vai haver ninguém para chorar por você – disse Gage. Que rameira ela era, hein? Fodeu com todos os seus amigos, Jud. Dava o cu para eles. Era o que ela gostava mais… agora está queimando no inferno, com artrite e tudo. Eu a vi lá, rapaz. Eu a vi.
A trama gira em torno do médico Louis Creed que, com esposa (Rachel) e dois filhos (Ellie e Gage), mudam-se para a pequena Ludlow, cidadezinha próxima a Castle Rock, integrante da geografia fictícia do Maine. Ali, ele trava amizade com o casal de idosos Jud e Norma Crandall. Jud repassa ao novo amigo informações acerca do local, desde sobre a trilha para o pequeno cemitério de animais próximo até o perigo representado pela movimentada rodovia 15 que corta o local, onde muitos bichos domésticos são atropelados. No primeiro dia de trabalho, Louis enfrenta uma estranha experiência com o estudante Victor Pascow, falecido tragicamente e que lhe diz coisas estranhas sobre o cemitério de bichos e o “outro” cemitério. Quando Church – o gato de Ellie – é atropelado e morto, Jud (por motivos íntimos discutidos bastante na obra escrita) faz Louis enterrá-lo no “outro cemitério”, além do de animais. Trata-se, talvez, de solo amaldiçoado na cultura dos micmac, onde o que é ruim ali habita. Pouco tempo depois, Church retorna à vida, de maneira estranha; é como se, do gato, voltasse apenas o corpo, mas preenchido com algo mais. Depois, Gage também e morto da mesma forma, e, inevitavelmente, Louis o enterra no solo maldito. E este não é final de uma série de tragédias sobre a família Creed. Mais ainda virá!

No cinema, pareceu desconexo a forma como tudo se desenrola. Revi o filme para ter essa certeza. No romance, notamos que, além dos aspectos notadamente humanos diante da perda de entes queridos, todo poder do local leva a uma série quase metodicamente planejada de eventos. O gato estava castrado e molenga antes de falecer, de maneira que seria improvável ter saído para longe e ser atropelado. Esse vórtice negativo nos recorda o hotel Overlook de O Iluminado e a Casa Marsten em A Hora do Vampiro. No cinema, também se perdeu a característica da pequena Ellie em manter contato com algum resquício do estudante Pascow e seus dons premonitórios que remetem bastante às crianças iluminadas de O Iluminado e sua sequência Doutor Sono.

Sempre há música abundante nos livros de Stephen King. Praticamente em todos os romances nós encontramos aquele momento musical, letras transcritas ou apenas pequenas menções. Em Pet Sematary o destaque fica para Ramones, desde citações internas a verso como epígrafe a capítulo. Além disso, num determinado momento, Louis Creed utiliza o pseudônimo de Dee Dee Ramone ao registrar-se no hotel com acesso fácil ao cemitério onde está o cadáver de Gage. No cinema, o caminhão que atropela Gage toca Ramones a toda altura. E em 1989, após um contato com King, os Ramones gravaram a canção... Pet Sematary.

Uma curiosidade: além de assinar o roteiro, King atua na produção como o sacerdote à frente do enterro de Missy Dandridge. Como sempre, em uma péssima atuação. Ver King na tela não é legal. Mas, claro, nada se compara à sua "atuação" em Creepshow (1982). Sobre a senhorita Dandridge do filme, destaco que, no romance, ela não é a encalhada frustrada ali retratada, sequer chega a falecer na trama original. Trata-se apenas de uma vizinha generosa e prestativa dos Creed. Além disso, serviu, de certa maneira, para substituir a esposa de Jud, Norma, para o momento do funeral. Para a adaptação, suprimiram Norma do enredo, como se Jud fosse um solteirão ou viúvo de longa data.

O ponto mais positivo da adaptação, acho, foi a caracterização medonha de Zelda, irmã doente de Rachel que lhe atormentou a infância com seu azedume, enquanto definhava por meningite raquidiana. Como não conseguiram uma atriz magra e esquista o suficiente, optaram pelo ator Andrew Hubatsek. A caracterização ficou foda, como podemos ver no gif abaixo.


via GIPHY

O protagonista Louis Creed destoa no universo ficcional de King. Em regra, pais representados em suas obras não são flores que se cheirem. Talvez isso se deva ao fato do próprio autor, ainda criança, ter sido abandonado por seu genitor e sua mãe ter ralado pra burro, sozinha, para sustentá-lo. A figura materna em Stephen King, quase sempre, é forte e generosa; a paterna, o inverso. Pais violentos estão presentes em narrativas como It, por exemplo, com o pai rabugento de Beverly Marsh e em alguns contos. Em O Iluminado, Jack Torrance tenta estraçalhar a cabeça de seu filho Daniel com o taco de roque; a proteção fica a cargo da mãe Wendy. Até mesmo em obras mais recentes esse aspecto é notório, como em Sob A Redoma, quando Big Jim planeja a morte de seu único filho no hospital, temendo que ele se torne um estorvo maior. Em aspecto mais amplo, destaco ainda Dança da Morte, com o bem personificado em Mãe Abigail e a essência do mal encarnada no pai do agrupamento adversário: Randal Flagg.


O título do livro chama atenção. "Sematary" está errado porque é a reprodução do que crianças escreveram na placa na entrada do local, ao invés de cemetery. No livro, brincaram com a tradução optando por "simitério". Isso é emblemático na trama: o "simitério" é bem cuidado por gerações de crianças da região, que tentam controlar o mato, mantendo a trilha razoavelmente limpa, bem como os mini túmulos. As cruzes e lápides são feitas com tudo quanto é material de refugo: latas velhas cortadas a alicate, pedaços de tábuas e de pedras como ardósia. Estranhamente, as sepulturas seguem o sistema concêntrico, similar ao em espiral dos micmacs. Essa procissão de crianças unidas em torno de algo sombrio (como a morte às vezes nos parece) me trouxe à mente o conto As Crianças do Milharal.

A edição que li foi da Suma de Letras (selo "vergonha" da Objetiva, onde se incluem obras de baixo valor literário, destinadas a mero entretenimento). O volume é padrão: brochura com orelhas, papel pólen soft - aquele amarelinho que não cansa a visão durante a leitura -, formato 16 x 23 cm, 424 páginas e tradução de Mário Molina.

Em diversas postagens, sempre critiquei a falta de tato da Suma de Letras para lidar com o público fiel de alguns autores. Quando resenhava obras nacionais, postava imagens de edições especiais gringas, com capa dura, sobre capa, papel especial e até mesmo ilustrações. Insisti que, mesmo em tiragens limitadas, os leitores de King dariam chances a essas edições. Afinal, além de leitores, também somos colecionadores, de certa forma. E, com o avanço da leitura digital, os livros poderiam ser mais valorizados enquanto objetos táteis. E não é que a Objetiva abriu os olhos para isso? Oxalá! Antes tarde que nunca, como dizia vovó. Para o segundo semestre estão programados Cujo e A Incendiária com novo projeto editorial, conteúdo extra e capa dura. Acredito que as publicações da DarkSide Books influenciaram nisso de alguma forma. Aguardemos!


Abraços fúnebres e até a próxima.

3 comentários:

  1. o filme (1989) me assustou bastante quando criança, já o livro me pareceu bem mais "calmo" de absorver anos depois
    ainda há uma continuação lacradora (1992) e um remake lacrador (2019) - não vi nenhum dos dois.

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    1. Nossa! Felizmente desconheço essa sequência e nunca vi o remake. A vida é curta!

      Quando somos crianças, esses filmes impactam, mesmo. Neste caso, por exemplo, o livro foi mais "suave" para mim, tb, só que o li na maturidade.

      Abraços!

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