sábado, 24 de agosto de 2019

It: a coisa [ romance de Stephen King ]

Olha só, uma resenha!



Ele acordou só uma vez: quando, em algum inferno escuro, fedido e úmido  onde não havia luz,  luz nenhuma, a Coisa começou a se alimentar. (p. 809)

Mas é bom pensar assim por um tempo no silêncio limpo da manhã, pensar que a infância tem seus segredos doces e confirma a mortalidade, e que a mortalidade define toda a coragem e todo o amor. Pensar que o que já ansiou pelo futuro também precisa olhar para trás, e que cada vida faz sua própria imitação da imortalidade: uma roda. 

É o que Bill Denbrough pensa às vezes naquelas manhãs depois de sonhar, quando quase se lembra da infância e dos amigos com os quais a compartilhou. (p. 1102)


Stephen King gosta mesmo de escrever (d'oh...). E é extenso sem ser prolixo, tampouco enfadonho. Algumas pessoas detestam-no; outras, amam. Parece não haver meio termo. Já eu admiro sua capacidade narrativa extensa e dinâmica, num texto fluido, sem arroubos pedantes (porém, com bom nível literário). 

A nova edição nacional de A Coisa precisou de aproximadamente 1100 páginas em fonte pequena. E o esforço em adentrar neste calhamaço e conhecer um pouco da amizade dos garotos do Clube dos Otários (originalmente, Losers' Club) contra a entidade maligna que assombra a pequena Derry vale a pena. Muito a pena. Assisti ao filme em VHS. Lá se vão anos e não recordo bem a película. Mas tanto faz, pois o romance supriu qualquer necessidade que eu ainda tinha de matar a saudade de Robert Gray, também conhecido por Bob Gray, Bobby ou Pennywise, o palhaço dançarino e sanguinário que gostava de distribuir balões de hélio e arrancar membros de criancinhas enquanto ainda vivas. No Brasil, também é chamado de Parcimonioso. Na mais recente tradução brasileira, evitaram esta denominação. 

A cidade Derry integra a geografia fictícia de King para o Maine, assim como Chester's Mill, Jerusalem's Lot e Castle Rock. Mas referências reais sempre são utilizadas para situar o leitor. Vários elementos comuns em seus livros também estão presentes, como o temido presídio de Shawshank (cenário, aliás, do prestigiado filme Um Sonho de Liberdade, adaptado de sua novela Rita Hayworth and Shawshank Redemption).

É complicado falar bem de uma obra tão extensa em poucas linhas. Em termos de sinopse, podemos dizer que se trata da vida de sete amigos que, quando crianças, se unem em torno de um grande e misterioso mal a assombrar uma cidade há décadas (ou milênios!), precisando reunir-se novamente, quase vinte e cinco anos depois, para o mesmo fim. De maneira mais ampla, é a história do mal em si, do medo e do terror que nasce e se alimenta do próprio assombro de uma determinada região. Acho que It é um romance sobre o lado sombrio de uma cidade, enfim. E Derry, com seu maneirismo provinciano, casinhas bonitas com gramados verdes e boa vizinhança onde todos se conhecem, não deixa de ser parecida, em seu âmago, com uma "prostituta morta com vermes saindo da boceta", para usar as palavras de Don Hagarty, personagem da história, logo na Primeira Parte.

E, realmente, Derry é um microcosmo de uma dura realidade permeada por ódio racial, violência doméstica, sexismo e dissimulação social de toda ordem. Já na década de '50 nos deparamos com crianças que costumavam torturar pequenos animais domésticos, parricídio, psicopatas de cinco anos de idade que matam bebês e até mesmo paranoia e homossexualismo infantis. Derry parece se apresentar como vórtice natural para uma cadeia de dor. E, próximo à metade do romance, o pai de Mike Hanlon, após narrar ao filho a morte de quase vinte negros num acampamento militar, queimados pela Legião da Decência Branca, arremata o seguinte: "É por causa do solo. Parece que coisas ruins, coisas cruéis, se dão bem no solo desta cidade. Pensei nisso várias vezes ao longo dos anos. Não sei por que é assim... mas é". Não há bem um personagem principal no romance. O mais próximo de protagonista seria Bill Denbrough. Entretanto, todos os sete garotos o são. Além disso, Derry também é uma personagem na trama, e não apenas mero ponto geográfico.

Uma nota curiosa. Também por Will Hanlon é mencionado que, em Derry da década de '30, já esteve o então soldado Dick Hallorann, o mesmo cozinheiro que conhecemos um pouco melhor no excelente romance O Iluminado. Este cruzamento de personagens entre obras é comum em King. Aliás, há uma conexão maior entre ItO Iluminado: a presença do mal não como habitante de um lugar, assombrando-o; mas, sim, um lugar como "O Mal" em si. Derry é um lugar macabro, assim como o Overlook.

Outro personagem de romance distinto que faz uma ponta na história é o automóvel Plymouth Fury 1958 branco e vermelho, protagonista do romance Christine, também adaptado para o cinema em 1983. Em It, o carro é oferecido como cortesia de Pennywise ao insano Henry Bowers, para que chegue até o Derry Town House e mate cinco dos Otários que ali estão hospedados. Lembrando: os protagonistas se autodenominam integrantes do Clube dos Otários.

Também encontrei uma referência de It num romance mais recente de King: Sob a redoma. A mesma marca encontrada na pequena porta de madeira que dá acesso ao lar de Pennywise no subsolo de Derry é a encontrada por Rusty Everett e amigos no estranho artefato depositado no pomar dos McCoy. Fotografei as marcas e elaborei a imagem abaixo. Até onde pesquisei brevemente, esta "marca" é comum em diversas obras do escritor ainda não lidas por mim.




Dentro da cidadezinha, um local é emblemático: o Barrens, o trecho sujo onde a população descarta lixo e esgotamento há décadas e por onde correm águas de canais e do Kenduskeag (riacho realmente existente no estado do Maine). Enquanto eu lia It, sempre pensava numa área próxima à minha casa que associei imediatamente ao "Barrens". Não há denominação sabida para o trecho. Trata-se de um pedaço morto do rio Guaribas entre dois bairros da cidade onde vivo, parte de um grande trecho de margem fluvial entre duas rodovias. O curioso é que esta passagem de matagal, lama e água conhece pouco desenvolvimento, mesmo estando encravada na zona urbana do município e entre dois bairros relativamente grandes (de acordo com os parâmetros locais). Passo muito por esta área para cortar caminho. As pessoas evitam por ser meio ermo. Mas até gosto dessa desolação, especialmente à noite (quando aparecem várias corujas). O "meu" Barrens fica a 500 metros de minha casa.

Todos os elementos sempre presentes em obras de King estão em It. Em vários capítulos, somos surpreendidos com "minispoilers" do autor, que sempre gosta de nos avisar de antemão o que poderá acontecer com um personagem; e nos deixa ainda mais ansiosos com isso, pois queremos descobrir "como" aquilo ocorrerá. A música americana também é marcante. Tanto que, na penúltima página, há até mesmo uma extensa relação de todas as canções mencionadas durante o romance.

Novamente, destaco o péssimo acabamento de nossas brochuras. Um livro tão robusto merecia um encadernado. Após a primeira leitura, o volume já pede socorro. Considerando que nosso país dá aos livros imunidade tributária, poderiam caprichar mais nas publicações. Algumas editoras até estão dando o bom exemplo por aqui. Mas a Objetiva ainda engatinha neste sentido: falta de zelo no acabamento, mesmo que em tiragens limitadas, como opção capa dura ao leitor. A tradução que li é de Regiane Winarski. Mas também não gostei dessa adaptação para o título original. Poderiam tê-lo mantido integralmente, sem complemento. Ou apenas traduzi-lo para "A Coisa". Mas a redundância desmiolada de It: a coisa... é coisa de gente de bastante mau gosto. Acredito que, melhor ainda seria apenas "Coisa" (sem o artigo) ou, então, "Aquilo". Dei uma conferida na versão digital original e "It", no contexto da trama, me pareceu realmente melhor adaptado, para nós, como "Aquilo" ou qualquer outro pronome demonstrativo neutro. Ao menos, é que o penso por enquanto.

Muita gente pergunta a quem leu o livro: "O que é realmente o palhaço que parece mudar de forma?". King não diz esmiuçadamente. Não vou falar muito, mas Bill (líder do Clube dos Otários) acredita tratar-se de uma entidade conhecida em várias culturas pelo mundo, especialmente pela dos índios Algonquinos do nordeste norte-americano (onde fica a Nova Inglaterra, e, logo, o estado do Maine). Além disso, a existência da Coisa seria ancestral, primitiva - porém, complexa - e de origem, certamente, cósmica. Não estou dando spoilers, pois não acreditei nessa explicação toda e nem o autor foi claro a respeito. Fiquei com a ideia de que "Aquilo" é uma presença antiga acomodada no solo de Derry que, com os séculos, não apenas projetou o mal em seu habitat, como, também, se alimentou dele. Acho, enfim, que a Coisa é um querer coletivo pelo mal, pela violência e crueldade. Em resumo: uma manifestação de vontade. Mas isso é mesmo apenas meu ponto de vista. Cada um pode retirar suas próprias conclusões. Já na última parte do livro, próximo ao final, a Coisa passa a se expressar. Conhecemos mais de sua natureza, de seus pensamentos e desse novo sentimento dentro de si: medo. Mesmo assim, creio, a Coisa é senil em razão de sua existência primordial e sua ausência de propósitos. Assim, acho que os pensamentos da Coisa não são confiáveis.

De qualquer maneira, King nos dá uma explicação para a existência da Coisa que remete à teoria maniqueísta da existência de Deus. A própria entidade, aliás, possuiria uma existência dualista: corpórea no subsolo de Derry, em várias formas; e incorpórea, na forma de energia no extremo de um macroverso. Mas, aí, fica a critério do leitor como assimilar as informações que nos chegam por meio das impressões dos personagens.

O romance conseguiu abordar temas "pesados", como os citados mais acima. Mas acho que a audácia maior de King foi a inserção do amor físico entre crianças. Para as feministas que veem no Principio da Smurfette um aspecto do machismo patriarcalista opressor, é bom destacar que Beverly é a única garota num círculo de sete amigos. Só que isso lhe dá poder sobre eles. E o viés sexual do relacionamento entre os meninos não é apenas conotativo. Abordando essa relação, King, em 1986, mexeu num tabu, atiçou o vespeiro que ainda rende muita discussão entre leitores.

Foi medonho, divertido e emocionante ler It. Sobretudo, gostei dos trechos bobos envolvendo a amizades dos Otários, conversando abobrinhas, comentando músicas ou algum filme exibido na televisão. Os momentos à toa nas ruas da cidadezinha ou às margens do "esgoto" do Barrens tiveram um poder evocativo sobre mim. Fui privilegiado na infância: cresci numa casa (não em apartamento), com ruas livres para brincar. A noite era nossa assim como a manhã. Jogávamos bola (futebol, vólei, handebol), organizávamos campeonatos de bola-de-gude e trocávamos gibis, assim como tentávamos a sorte com figurinhas no jogo de bafo. Havia zonas ermas onde podíamos ir em busca de aventuras, áreas de mata e riachos no bairro de minhas primas. Tive muitos amigos. Como era simples minha vida até próximo do final da adolescência! It trouxe à tona essas recordações; sem o Pennywise (felizmente) e sem surubinhas (infelizmente).

It é um romance sobre a infância. Só que os garotos do Clube dos Otários, por uma razão desconhecida, sofrem com o esquecimento de como eram próximos e de tudo o que passaram juntos. Talvez isso  seja magicamente necessário. Não sabemos. Mas, já perto do final da trama, Mike Hanlon começa a sentir que tudo será esquecido (mais uma vez; só que, agora, por todos eles). Mesmo que tente registrar algo, será apagado. Antes que isso ocorra totalmente, ele só tem algo a dizer a si mesmo: "Eu amava vocês todos, vocês sabem. Eu amava todos vocês.". É a vida que precisa seguir.

As quase 1100 páginas do romance são divididas em cinco Partes, que aglutinam os 23 capítulos e cinco interlúdios. O tempo narrativo não é linear. Dentro de um mesmo capítulo, o leitor vai e volta da década de '50 a de '80. E esse recurso foi desenvolvido competentemente pelo escritor.

No VHS onde assisti a adaptação cinematográfica, havia o subtítulo "uma obra-prima do medo", recordo bem. Só que deixou a desejar quanto a esse "efeito", por assim dizer. Já o livro bem que poderia ter essa menção ostensiva na capa, pois lhe faria jus. Sem dúvidas, um grande tratado sobre o medo em si, enquanto entidade mais que palpável.

Em pesquisa superficial no Google encontrei vários links para baixar o livro gratuitamente. Se você tem leitor digital e gosta de ler no ecrã, faça isso. Stephen King está velhinho e podre de rico. Ela não vai se queixar por seu download. E, além disso, as editoras nacionais estão cagando e andando para você, com brochuras caras e fuleiras que mal resistem a muito manuseio. Aliás, o próprio autor grita aos quatro cantos que não precisa mais de grana.

Fico por aqui. Abraços parcimoniosos e até a próxima.


Update. Esta postagem foi originalmente escrita há alguns anos, para o blogue anterior. Há pouco tempo, It retornou ao cinema em nova produção que não vi nem pretendo ver.

4 comentários:

  1. Nunca leve a sério adaptações desse autor. Claro, há as boas. De King, por exemplo, cito Conta Comigo, À Espera de Um Milagre, Um Sonho de Liberdade, O Aprendiz... Mas, no geral, a maioria é ruim.

    Há adaptações que me parecem melhor que o romance, como História Sem Fim (o primeiro), Clube da Luta, Forrest Gump, entre outros. Mas é raro.

    Este livro é fantástico. Esse filme citado por você é o que falei acima. Será em duas partes. Não verei, mesmo. Não ando perdendo tempo com essas coisas.

    Sobre Cemitério Maldito, não vi a nova adaptação. Mas o romance é excelente:
    https://bloguedoneofito.blogspot.com/2019/08/o-cemiterio-maldito-de-stephen-king.html

    Abraços!

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  2. parodia dos simpsons:
    The.Simpsons.S34E05.

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    1. parodia philip k dick:

      https://www.tvfanatic.com/quotes/philip-k-dick-it-cant-be-its-as-if-superman-moved-to-gotham/

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    2. Kct! Temporada 34!!!! Há anos não vejo os Simpsons atuais. Conferindo.

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