domingo, 25 de agosto de 2019

A Dança da Morte de Stephen King [ Resenha, Romance ]


Apenas os cogumelos vicejavam grandes e gordos no escuro, 
até mesmo ele sabia disso, nossa, como sabia.


A primeira edição de A Dança da Morte (The Stand) de Stephen King passou por um corte de quase quatrocentas páginas, em razão de problemas de contabilidade da editora. Posteriormente, o autor revisou todo o texto e reinseriu quase tudo novamente. Hoje, você pode ler a tradução brasileira de Gilson Soares em suas 1245 páginas, em letra - infelizmente - miúda. Acho que livros assim deveriam ser impressos em encadernados resistentes, com capa dura. Ou então em dois volumes, que poderiam ser acondicionados numa caixa. Tentar colar tanta página numa brochura não é legal com o leitor/colecionador. E, mesmo que o sujeito não seja colecionador, também há outro problema: o volume não resiste a várias leituras e a ideia de que um livro deveria resistir à passagem do tempo para atingir mais leitores cai por terra.

Insisto sempre na ideia acima, pois acredito que, se todos os leitores brasileiros espernearem, o mercado nacional terá um pouco mais de respeito conosco. Até o momento, conheço apenas uma editora nacional que disponibiliza versões "HC" e "TP" simultaneamente, para todos os tipos de bolso: a caprichosa DarkSide Books. Além disso, a Cosac Naify também vem, há algum tempo, investindo em edições caprichadas, puro deleite tátil. Numa época de desapego à leitura em meio impresso, práticas assim ajudam para despertar, novamente, o gosto pelo papel.

Os leitores de Stephen King são fieis e não se contentam apenas com um ou dois títulos. Eles querem ler tudo. É um público que investe no prazer da leitura de seu autor preferido. Penso que valeria a pena investir melhor neste filão. A Suma de Letras (Objetiva) mereceria - acho - não ter mais os direitos de publicar, no Brasil, livros do autor. É realmente tão complicado oferecer versões capa dura - de forma limitada, para evitar encalhe -  de alguns títulos mais robustos? A DarkSide Books já mostrou que não. Falta apenas boa vontade e respeito com o consumidor.

Não vou me estender muito sobre a trama do livro, pois isso deixaria esta postagem imensa. E nem sei como resumiria tantas tramas e subtramas aqui. Seria cansativo para mim e para quem lesse a resenha.

Brevemente, vamos lá...


O enredo é dividido em três partes. Na primeira, assistimos como o vírus da supergripe foi deflagrado e se espalhou rapidamente sem controle algum por seu criador: a [des]inteligência militar americana. O Capitão Viajante (como fica conhecido pela facilidade de contágio rápido entre as duas costas) aniquila - estima-se - quase 98% da população mundial e dos animais domésticos. Na segunda parte, acompanhamos o cotidiano do remanescente norte-americano agrupado em dois núcleos: em torno da generosa e devota cristã Mãe Abigail e junto ao enigmático Randall Flagg, o "homem escuro", o "incorrigível", o "Adversário". Na terceira e última parte, a permanência dos dois agrupamentos torna-se insustentável após a primeira investida de Flagg à pequena cidade de Boulder; e, assim, há o confronto.

A deflagração em escala planetária do vírus, ironicamente, se dá por um pequeno acidente. Todo o centro de pesquisa de armas biológicas mantem proteção eletrônica contra contágio, onde automaticamente a área fica isolada. Mas apenas um homem consegue escapar da quarentena, por sorte e fração de segundo. Charlie Campion foge, depois, acompanhado de sua esposa Sally e da criança Baby LaVon. E, já no Texas, iniciam a dança da morte. Bastam quatro dias para o vírus matar um adulto saudável.


Foi divertido e empolgante acompanhar a trajetória de cada um dos principais personagens, especialmente seus dramas pessoais pré-crise e como essas circunstâncias repercutiram na sobrevivência pós apocalíptica. O afável e às vezes irritante Stu. Frannie, forte/debilitada, segura/confusa. Larry Underwood, um homem em construção. Nick Andros, o mudinho boa praça que poderia ter desenvolvido uma sede por tirania e controle, acaso não morto prematuramente. Harold, ex-gordinho espinhento vingativo que mereceu tudo de ruim o que lhe ocorreu para aprender a deixar de ser burro. Julie Lawry, a prova de que, mesmo após o fim do mundo, as "periguetes" terão seu espaço. E tantos outros. Mas o personagem mais instigante é mesmo o vilão Randall Flagg, o Turista Andarilho. Em um momento de transe do personagem Tom Cullen, ele é descrito como:
Ele parece como qualquer um que a gente vê na rua. Mas, quando sorri, os pássaros caem mortos das linhas telefônicas. Quando olha pra gente de certa maneira, a nossa próstata dói e nossa urina queima. A relva fica amarela e morre, quando ele cospe. Ele está sempre fora. Ele veio do tempo. Não sabe quem é. Tem o nome de mil demônios. Jesus o jogou no meio de uma vara de porcos certa vez. Seu nome é Legião. Ele tem medo de nós. Estamos dentro. Ele conhece magia. Pode chamar os lobos e viver nos corvos. Ele é o rei de lugar nenhum. Mas tem medo de nós. Tem medo de... dentro.
Acho que o homem escuro nasceu humano. Porém, adquiriu contornos sobrenaturais sem nem mesmo tomar dimensão do que lhe assumia a natureza. Já na sua apresentação, King nos mostra que ele esteve ligado aos eventos mais sombrios de ódio e violência ocorridos a partir da década '50 na América do Norte. Flagg atraía o mal ou seria atraído por este; ou ambas opções. Um vilão - uma entidade - que ficará grudada em meus miolos por bastante tempo. De certa forma, Flagg é uma espécie de vórtice da história de violência americana. Um sonho de Larry Underwood é emblemático quanto a isso:
Ele baixou o olhar para a primeira fila e sentiu um súbito jorro gelado de medo. Charles Manson estava ali, o na testa reduzido a uma cicatriz branca e retorcida, aplaudindo e cantando. Também Richard Speck, olhando-o com olhos arrogantes e impudentes, um cigarro sem filtro tremelicando entre os lábios. Ladeavam o homem escuro. Atrás deles, John Wayne Gacy. Flagg liderava o coro.
Aparentemente, o Andarilho será encarnado por Matthew McConaughey na próxima adaptação do livro às telas. Certamente, fará justiça ao papel. Passei a confiar bastante em sua capacidade após interpretações recentes em OuroClube de Compras Dallas e Interestelar.

Flagg e King nos bastidores da minissérie.

Um dos aspectos mais interessantes do romance, para mim, é a exposição convincente de como o vírus incubado em uma família de três membros pode espalhar a morte ao redor do globo. King foi inteligente ao exemplificar a maneira pela qual esse vírus em constante mutação poderia se espalhar rapidamente entre as costas americanas. Para atingir o restante do planeta rapidamente, o autor usou uma explicação de gelar os ossos. A inteligência militar americana, convicta do Armagedom, determina que agentes de campo situados na China e Europa deflagrem a contaminação. O que começara por um mero acidente, terminou com a investida biológica proposital norte-americana contra o mundo.

Finda a leitura, concluí que se trata, dentre outras coisas, de um romance sobre sacrifício e purificação. Me pergunto até onde as forças que conduziram Mãe Abigail, realmente, estavam preocupadas com a sobrevivência do Bem em si. Além disso, o final nos deixa com aquela sensação de que, mesmo higienizados por mil hecatombes nucleares, jamais abandonaremos nossa natureza austera e a ânsia de dominação. O romance possui prólogo e epílogo, intitulados, respectivamente, de O Círculo se Abre O Círculo se Fecha. E o pensamento final de um certo Russell Faraday (sem muitos detalhes aqui para não entregar o enredo), encerra a narrativa assim:

A vida era como uma roda que nenhum homem podia deter por muito tempo. E, no final, ela sempre girava de novo para o mesmo lugar.
Alguns leitores acham o livro excessivamente longo. Em seu prefácio, Steve comenta sobre essas críticas, de uma maneira clara: podemos resumir qualquer história a poucas páginas; contudo... haveria a mesma graça ao lê-las? Eu particularmente gosto do jeito que ele escreve, extenso sem ser prolixo e cansativo. Às vezes, o tempo de uma hora na narrativa de King pode consumir dezenas de páginas, uma penca de personagens principais e secundários, vários locais distintos e infinitas subtramas quase insignificantes. Mas não é a vida assim? Sob a redoma ocupou 950 páginas para narrar uma semana na vida de alguns habitantes da pequena Chester's Mill. E lemos tudo achando que o autor poderia ter escrito mais mil páginas para complementar a trama, pois tudo o que ele nos traz é agradável e divertido para se saber. Com King em mãos, me sinto um adolescente assistindo à Sessão da Tarde na década de '90.

Durante a leitura, encontrei pequenos erros que atribuo à falha na digitação (e da revisão, claro). Acho isso até normal. Só chateia a manutenção da tradução do título. The Stand é, além do título original da obra, o da terceira parte, quando há o confronto entre as forças antagônicas. É algo que poderia ser traduzido como "O Esforço", "A Luta" ou - melhor - "A Resistência". Embora o romance Salem's Lot (também de King) tivesse no Brasil o título de A Hora do Vampiro (durante décadas), a Suma de Letras corrigiu isso na última edição. Poderiam fazer o mesmo com A Dança da Morte. Por mais que o autor se refira literalmente a uma "dança da morte" (utilizando essa expressão em alguns momentos da trama), parece se forçar demais a barra em meter esse título de impacto numa obra intitulada de forma tão simples e despretensiosa.

O romance foi adaptado para a televisão em 1994 (vinheta de abertura no vídeo acima). Vi apenas alguns trechos de episódios, por isso não tenho como afirmar nada acerca da qualidade da adaptação. Não gostei, contudo, da estética escolhida. Pelo pouco que vi, me pareceu um trabalho meio porco. Entretanto, destaco que a série ganhou vários prêmios e alguns fãs ainda a elogiam. Gostaria de assisti-la, posteriormente, mais pelo fato de ser protagonizada por minha amada Molly Ringwald. Fala-se que uma nova adaptação será feita, provavelmente dividida em quatro filmes. A história também foi levada aos quadrinhos pela Marvel, com roteiro de Roberto Aguirre-Sacasa e arte de Mike Perkins. Já vi pedaços de scans, mas também não posso dizer se vale a pena, pois não me interessei em ler tudo, pois não consigo gostar de adaptações de romances para HQs. Mas fica a critério do gosto de cada um.

O público americano teve editada a primeira edição de luxo da versão sem cortes de The Stand, autografada pelo escritor e o ilustrador Bernie Wrightson (bem conhecido do público de quadrinhos por seu trabalho à frente de O Monstro do Pântano). Limitada a 1250 unidades e numerada, a encadernação é em couro legítimo (não percalux nem similar) com corte dourado. Para guardar o volume, acompanha caixa de madeira forrada em tecido. Esse mimo foi posto à venda por US$ 3.200,00 e esgotou rapidamente.

E, por  último, acerca do romance, destaco que Mãe Abigail Freemantle - a líder negra centenária do povo da Zona Franca de Boulder, a personificação do Bem e escolhida por Deus para guiar o remanescente humano à luz - é filiada ao Partido Republicano, fazendo assim justiça às origens desta legenda conservadora, essencial ao fim da escravidão americana.

Abraços iluminados e até a próxima.




Update. Esta postagem foi escrita há vários anos, no blogue anterior. Na época, Charles Cosac ainda não cogitava fechar sua editora, mesmo esta não sendo lucrativa em seus dezenove anos de resistência.

8 comentários:

  1. Ah, uma resenha de King <3 Eu ando meio desanimada porque raramente vejo resenhas do autor pelos blogs literários. Ultimamente 99% das resenhas são de livros de romance e não são nem um pouco a minha praia. King é meu autor preferido porém ainda não li Dança da Morte. É um livro enorme mas não o encontro para ler em lugar nenhum, vou ter que comprar online. Também acho que deveria ter uma edição mais caprichada ou até mesmo capa dura como as da Darkside. Eu tenho It aqui e por mais que tenha cuidado ao folheá-lo, a lombada está ficando bem marcada por ser um livro muito grande. Nesse ano a Suma investiu em uma série chamada Biblioteca stephen King onde relançou alguns livros que estavam esgotados como A Incendiária, Cujo, A Metade sombria etc e disse que aos poucos vai relançar outros títulos. Porém nenhum lançado até agora foi um calhamaço como esse. Estou lendo O Apanhador de Sonhos do autor e como é uma edição de bolso, ficou com mais de 800 páginas e a lombada "quebrou" ao meio, quase partindo o livro em dois quando o abri para ler ao chegar na metade. Isso me doeu o coração. Já ouvi falar muito no Randall Flagg e o King mesmo disse que ele é o seu maior vilão, tendo aparecido em Torre Negra até. Eu estou doida para ler esse livro a o conto Rage que infelizmente foi tirado de circulação pelo autor.
    Enfim, fico feliz de ter achado seu blog. :D

    Abraço,
    Parágrafo Cult

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sobre: "Ultimamente 99% das resenhas são de livros de romance e não são nem um pouco a minha praia", curiosamente, a blogosfera é dominada por este gênero, o qual não me desce. E os poucos e antigos blogues voltados ao horror/terror praticamente foram removidos ou os responsáveis se desinteressaram em mantê-los atualizados.
      Eu tenho um Apanhador de Sonhos que veio faltando páginas impressas. Isso mesmo: quase 20 páginas vieram em branco! Aí precisei recorrer ao ePub para concluir a leitura.
      Ando cansado de comprar livros impressos de forma porca. Prefiro, assim, ler eletronicamente.
      Esta postagem foi republicação de meu blogue anterior. Após ela, a Suma realmente investiu em alguns capas duras de design duvidoso...
      Abraços e seja sempre bem vinda. Tb conheci seu espaço.

      Excluir
  2. oi, vc pretende reposta as postagem relacionados a Cosac Naify ?

    ResponderExcluir
  3. Vejo é pessoas preguiçosas para ler. Maratonam uma série e se queixam de um romance de 500 páginas.
    King é extenso, mesmo. Mas nunca prolixo. O que seu público leitor mais gosta é justamente esse esmiuçamento dos personagens, por mais insignificantes que pareçam.
    Para mim, quem fala mau de seu trabalho é porque não o leu.
    MAS... gosto é gosto.
    Acho King um autor sobrehumano, pelo volume e qualidade de sua produção.
    Abraços!!!

    ResponderExcluir
  4. Fabiano, como te falei noutro comentário, percebo que o povo está levando na valsa...

    O calor aí pode ser vantajoso, vez que o vírus parece gostar de frio. Aqui, nesta época, está ameno, pois é o período de chuvas.

    Sugestão: climatizador (aqueles com tanque de água) realmente ajuda no calor. E praticamente não consome energia. Consome até menos do que um ventilador convencional, porque esquenta menos.

    Cara, aproveite para ler, ver filmes e seriados!

    Abraços!!!

    ResponderExcluir
  5. Os dois shoppings daqui fecharam as portas hoje. Acho que aí tb será assim...

    Vc é um cara de fé, crente. Certamente sempre encontrará escape para esses maus momentos. Aliás, pela barra que já passou na vida, já demonstrou que aguenta o tranco.

    Abraços!

    ResponderExcluir

Comente ou bosteje.