domingo, 16 de setembro de 2018

Lost Girls e Magia do Caos


Entre tantos momentos emblemáticos em Lost Girls - conhecida entre os maldosos como a pornografia elegante do casal Moore-Gebbie - está o final, com os quadros do corpo estraçalhado de um jovem soldado e seu pênis arremessado. A trama que se iniciou num idílio quase bucólico de amor e descobertas (muita putaria narrada de forma poética), encerra-se com a eclosão da Primeira Grande Guerra, onde nada mais será como antes. Isso fica claro ao final do segundo volume, onde, paralelamente a uma orgia de garotas sedentas e sem pudores, desenrola-se o assassinato de Francisco Fernando da Áustria-Hungria. Logo após o atentado, Alice sente a mudança dos ventos, e nos diz:
E o feitiço foi quebrado, de uma hora para outra. Quando recobramos a consciência, percebemos como estava frio, um sopro de inverno insinuado na grama que descorou as flores e desacelerou os corações da libélulas. Algo havia mudado. Uma determinada inclinação da luz, uma mudança na pressão no ar. Sem a abrasadora armadura da nossa lascívia, tenho certeza que todas nós nos sentimos nuas na ocasião. Três mulheres de pele arrepiada em um bosque, subitamente desconfortáveis, invertas da sua graça, abandonadas pelos desejo. Algo verdadeiramente glorioso havia acabado para sempre. Uma mudança de estação. Nós mal falamos, ao voltar para o bote. O sol já estava se pondo, deixando uma luz elegíaca e melancólica em direção ao oeste. Nenhum pássaro voava no céu. Não havia mais pássaros para voar.
O trecho acima não nos remete apenas à teoria do caos, ao estado de complexidade irreversível causado ao mundo após um disparo de arma de fogo. Em um cenário de luxúria exacerbada como o do Hotel Himmelgarten, os prenúncios da guerra, da morte em grande escala, da carnificina, representam a antítese do sexo, também, como elemento da dualidade, onde a raiz de um estado de espírito está sempre em seu oposto. Isso é fundamento da Magia do Caos. Essa ideia nos é jogada brevemente no documentário The Mindscape of Alan Moore, mas sem aprofundamento.

A magia permeia praticamente toda a obra de Mú. Às vezes de forma apoteótica, como na colossal obra de cabala hermética em quadrinhos conhecida por Promethea; noutras, de maneira discreta, como em Lost Girls. É que a morte como oposto do sexo, entre os magistas do caos, tem maior relevância quando sabemos que o erótico é instrumento mágico assim como a morte igualmente o é; no caso da ascensão de graus entre Iluminados de Thanateros, aliás, é necessária para a reencarnação como Mestre; isto é: suicídio do corpo físico.

Enfim... Folheando essa bela HQ hoje, num domingo inútil, percebi como andamos carentes de nos aprofundar no viés mágico de grandes obras da cultura pop, ao menos a título de curiosidade ou referência.



* Todas as imagens nesta postagem são de meu acervo. Lost Girls (em três partes) de Alan Moore e  Melinda Gebbie  pela Editora Devir, com tradução de Marquito Maia e Liber Null e Psiconauta de Peter J. Carrol da Editora Penumbra, com tradução de Vinícius Ferreira.

2 comentários:


  1. "os prenúncios da guerra, da morte em grande escala, da carnificina, representam a antítese do sexo" - tem uma citação parecida em "Saga", onde alguém diz algo como a orgia é a antítese da guerra.

    "The Mindscape of Alan Moore" - achei esse documentário muito superficial.

    "carentes de nos aprofundar no viés mágico de grandes obras da cultura pop" - quase ninguém desce na "deep weeb" do pano de fundo das ideologias em que se basearam os autores para produzir sua escrita. Quando penso em conhecê-las me parece um poço sem fundo.

    abs!

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    1. "Quando penso em conhecê-las me parece um poço sem fundo"

      Ah, mas é tão legal se jogar de cabeça nisso... rs

      O doc é superficial mesmo. Mas é o que podemos esperar. Precisaríamos de uma minissérie sobre tudo o que foi abordado ali. E, claro, algo muito extenso nunca teremos.

      Abraços

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