sexta-feira, 8 de março de 2024

Mateus, Marcos, Lucas e João, a Bíblia Medieval Brega de Gustavo Piqueira

Deixando para outro momento eventual discussão sobre Inquisição e vedação de livros entre o povo cristão, destaco ao menos uma verdade notória: a Igreja foi necessária à preservação do conhecimento, em suas bibliotecas. Sem o trabalho de monges eruditos, muito teria se perdido. E a tarefa não era fácil: tratar o pergaminho, encaderná-lo, reunir copistas e miniaturista numa mesma abadia. A sabedoria clássica era acondicionada em obras de arte, infelizmente acessível a poucos. Remetendo a esses códices centenários, Gustavo Piqueira publicou seu Mateus, Marcos, Lucas e João, onde estes quatro consultores da indústria cosmética narram a trajetória daquele que veio para salvar as mulheres da celulite: o creme milagroso IN!, desenvolvido misteriosamente por Maria para comercialização junto ao seu sócio José. Como intermediário no lançamento deste produto revolucionário está o esteticista JB, que, durante o processo, cairá em desgraça pública (perderá a cabeça, metaforicamente) diante dos caprichos de certa Salomé, filha mimada de uma socialite amancebada com o ex-cunhado.

Conhece a história acima? Todos conhecemos um pouco. Na obra, encontraremos curas milagrosas. Paraplégicas que terão a tonalidade de suas coxas de volta. Defuntas que poderão ser apresentadas no funeral com a pele rejuvenescida, como se ressuscitadas. Certamente, a indústria concorrente não gostará de IN! e, com a ajuda de um consultor traíra (um tremendo judas filho da puta subornado com trinta mil reais e enforcado em contas, faturas e boletos), fará com que IN! seja crucificado pela mídia, após um processo fraudulento na Anvisa, onde o Superintendente da agência apenas despachará sumariamente o requerimento de vedação à comercialização, apenas para sair rapidinho do expediente, não sem antes lavar as mãos com álcool gel no banheiro do gabinete.

Após ler o “evangelho” de cada consultor, descobrimos que os quatro protagonistas estão, na verdade, em reunião discutindo possíveis releases encomendados à agência onde trabalham. São publicitários. O material deveria ser elaborado sob forma de storytelling, daí cada um com sua versão da chegada de IN! ao mercado, seus milagres, conspiração da concorrência, crucificação pela opinião pública e, depois, ressurreição em novíssima embalagem. E o pior: sabem que o produto é um embuste; mas, claro, precisam encontrar a melhor forma de agradar ao cliente.

A obra é uma afronta à fé cristã? Acho que não. É uma advertência, talvez: estamos comercializando IN! há dois mil anos, sem pudores. É interessante lembrarmos que “IN”, no acróstico INRI, significa Iēsus Nazarēnus (em latim). E que celeumas religiosas, às vezes, estão revestidas de pura vaidade. De resto, fica a critério de cada leitor o alcance da história bolada por Gustavo Piqueira, designer que vem conferindo ao livro brasileiro nova estampa, como já falei em postagem anterior. O viés tátil do livro, enquanto objeto, é explorado com inteligência. No entanto, a obra é, sim, uma crítica ao mercado publicitário psicopata, cheio de si mesmo, e por vezes inconsequente. Quem pensa que o autor está atacando o cristianismo, ledo engano. Ele critica o nicho onde transita: a venda de produtos, de ideias e de imagens. E, de quebra, ainda ataca a falsa religiosidade, a que só almeja ao lucro fácil. Foi essa, pelo menos, minha impressão na primeira leitura.

A prosa de Gustavo Piqueira é contemporânea. Como assim? Defino: sem um estilo reconhecível. Poderia ser algo escrito por qualquer pessoa. Infelizmente, é esse o traço fundamental de nossa literatura atual. Noto, contudo, que ele – em determinados momentos – recorre a tiradas bruscas bem humoradas à maneira, talvez, de Luís Fernando Veríssimo. Não sei se faz isso conscientemente. Mesmo assim, não consegue evitar excessos. O livro é bom. O mote é inteligente e a concepção estética impecável. Mas poderia ser mais enxuto, penso. Não dou "nota" a publicações porque acho um sistema impreciso justamente por buscar precisão. Quantas estrelas dar a um livro? Não sei. Só que: é um bom livro? Sim. Vale a pena comprá-lo? Também sim.

Acerca dos aspectos editoriais, quanto ao acabamento, vejamos. O livro vem numa caixa repleta de iluminuras carregadas em cores primárias, com muito vermelho, recordando códices medievais com influência islâmica. A capa possui duas chapas de metal (alumínio) e bijuterias vagabundas incrustadas (compradas na famosa rua 25 de Março e coladas dentro da Casa Rex, espaço de design de propriedade do autor). Acompanha, ainda, outro livro onde nos é contado um pouco acerca dos “bastidores da obra”, por assim dizer. O metal dourado com pedras remete ao kitsch do mundo da beleza em geral, com seus adornos poluidores no melhor estilo Gianni Versace. Resumidamente: o acabamento é de uma breguice de causar vergonha alheia à musa do tecnobrega Gaby Amarantos. Ponto ao autor por isso.

No miolo, o destaque (além da iluminura rococó) fica com as capitulares, desenvolvidas pela casa de design mencionada. Antes de cada parte do livro, também há uma brincadeira com o alfabeto utilizando arranjos das iluminuras em página inteira, representando a letra inicial do nome de cada apóst... ops!, consultor de IN!.

A edição foi limitada a mil exemplares numerados. Saiu pela EDUSP com 176 páginas, formato 23,0 x 27,0 cm, miolo em papel de boa gramatura (acho que similar ao pólen bold), com excelente impressão. Já o livro-anexo possui 88 páginas, em brochura, no formato 14,0 x 21,0 cm. O box, em papelão rígido, possui sistema de tranca com imã embutido. Quando lançado, custou R$ 60,00 (quase caridade). A limitação de exemplares, contudo, fez as poucas unidades ainda à venda alcançarem valores mais elevados, a critério do vendedor scalper

  • Postagem originalmente disponível na versão anterior do Blog do Neófito, em 09.06.2015.
  • Em razão da recente resenha, no meu canal, do romance Lorde Creptum, consegui recuperar esta postagem até então perdida para mim, a qual estava salva no acervo do Gustavo Piqueira, em seu site pessoal.

terça-feira, 5 de março de 2024

O Fantasma do Riacho Molhado


A casa era por aqui...
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.

Manuel Bandeira em Velha Chácara


Eta vida besta, meu Deus.

Carlos Drummond de Andrade, em Cidadezinha qualquer

Seriam sincronicidades da vida ou meras coincidências. Há postagem aqui de março de 2021 onde destaquei que os dias andavam chuvosos e que eu estava lendo e relendo trabalhos de Charles Burns. Estes dias novamente andam chuvosos. Chuvas fortes, torrenciais. Aqueles dias onde é melhor nem se arriscar a sair de casa para não ficar ilhado por aí devido a alguma inundação temporária. E, curiosamente, ontem, reli Sem Volta, daquele mesmo autor. Aparentemente, chuva me leva a caras como ele. Há fenômenos que não sabemos explicar.

Dessa vez, além de chuva, li-o ao som de um riacho turbulento. Devido às fortes chuvas, o riacho quase virou um rio de águas violentas e barrentas. Até troncos leves de árvores foram arrastados e um carro. Sim, um carro. Por que alguém deixaria carro estacionado no leito do riacho, nem imagino. Talvez devido ao Q.I. nacional que já está abaixo do dos chimpanzés. Foi um alvoroço. A macacada que habita o matagal ficou gritando bastante, acredito que buscando abrigo ou até mesmo devido a membros das famílias primatas que podem ter sido levados pelas águas.

Quando escolhi este lugar para morar, o atrativo foi a mata ao lado. O apartamento era de uma amiga e a propaganda dela foi justamente a mata e o riacho a poucos metros. Nunca morei ao lado de um riacho. Mas é realmente interessante ouvir o correr das águas ao lado de onde moramos, junto com o canto de pássaros, marrecas e guinchados de macacos. O receio é sempre com jiboias e jacarés. Mas ficamos de olho nisso regularmente. Vale o preço de ter um riacho nas imediações. Deve ser interessante crescer perto de algo assim, tendo o som das águas como elemento de recordação afetiva, como canta Manuel Bandeira, meu poeta preferido, no poema Velha Chácara, acima.

É isso. Assim como em março de 2021, este dias estão chuvosos. Ando relendo algumas coisas, passando o tempo com as alegrias e os problemas familiares, com meus gatos idosos e na santa e graciosa paz de Deus. A vida é muita curta para não tentarmos aproveitar o mero cotidiano, sem remoer águas passadas e possíveis enxurradas que podem nos espreitar no porvir. Sigamos nesta vidinha besta de cada dia.

Abraços lamacentos e até a próxima.